“Este é o país que não deu certo” – foi o que ouvi ao telefone do escultor João Bez Batti, quando eu lhe contava o motivo de não ter ido à abertura de sua exposição de obras “picassianas” na Casa da Cultura, em Caxias, na semana ada. Eu tinha ficado de castigo na sede do meu trabalho, consertando uma porta estraçalhada por um arrombamento na madrugada.
Desentortar metal e juntar cacos de vidro foi só uma parte do serviço inútil daquele dia; também instalaria uma tripa daquelas odiáveis serpentinas de aço galvanizado, inspiradas nos campos de concentração, no trecho da murada do terraço por onde o ladrão saltou, depois de ter escalado um portão de ferro do prédio vizinho.
No dia seguinte, as imagens de uma câmera de segurança mostraram o cara descendo pelas grades do portão, às três da manhã, com uma facilidade de atleta que dava quase mais inveja do que raiva. Quase podia-se ver a decepção nos gestos do rapaz, indo embora sem levar nada, depois de o alarme interno ter disparado.
O coração disparou quando, naquela manhã, o parceiro de trabalho notou uma brisa inocente que atravessava a porta quebrada. Além dos materiais que tornam possível nosso ofício de realizadores audiovisuais, logo pensamos no bem mais valioso que uma produtora de documentários com mais de 20 anos de estrada pode possuir: a sua imaterialidade – nossa vasta memória de imagens e sons, guardada em pilhas de HDs pesados e de pouco valor para um ladrão, mas que atirados ao chão poderiam ser danificados para sempre.
A ação de uma única pessoa poderia impor um Alzheimer brusco e coletivo à memória de centenas de mulheres e homens fascinantes – inclusive quase 20 anos de Bez Batti – que registramos ao longo do tempo; histórias, aventuras humanas, pedaços do mundo.
Anos atrás, também aqui na produtora, outro amigo, ao ver-me trancando a porta, comentou: “A fechadura é uma trava moral”. Com razão – as fechaduras e trancas no mais das vezes são limites éticos, doutrinas, mais do que barreiras físicas. A decisão de transpô-las deveria ser a mais difícil e dramática. Mas, basta querer, chaves-michas, chaves de fenda ou pé-de-cabra rompem qualquer moral.
Eis que agora andamos carregando nossos acervos de pessoas em HDs para casa, no porta-malas do carro. Andamos muito bem acompanhados. Além, é claro, de conviver com concertina cortante, novos sensores de presença – entre outros arranjos tecnológicos arcaicos e ultramodernos de uma sociedade que insiste em dar errado.