
Após a perplexidade e a revolta com a publicação e aprovação do Decreto 36/2025, que limita a transmissão da cidadania italiana, as empresas especializadas em assessoria na matéria já preparam uma reação. O principal caminho projetado é provocar o Poder Judiciário do país europeu a analisar inconstitucionalidades observadas na nova lei, abrindo caminho para a volta do reconhecimento dos direitos dos ítalo-descendentes.
O mote para a contestação, inclusive, já está delineado pela Nostrali, um das maiores companhias do setor e que está sediada em Caxias do Sul. O CEO da empresa, o italiano David Manzini, estava em Roma até a última semana, onde fez contatos para tentar evitar as mudanças. De volta ao Brasil e bastante incomodado com a lei aprovada, que considera evidentemente inconstitucional, ele revela que uma forma de atuação começou a ser desenhada já em março, quando o decreto foi publicado.
A estratégia prevê o foco na via judicial, já que os reconhecimentos istrativos estão muito s pela nova legislação. A ideia é que as novas ações judiciais para concessão da cidadania levantem, já na primeira instância, a tese da legitimidade constitucional do Decreto 36. Como na Itália o debate sobre o teor das leis é centralizado na Corte Constitucional, a tendência é que os magistrados do primeiro grau questionem esta corte superior sobre como proceder, especialmente porque haverá grande quantidade de processos para julgar.
Com isso, a Corte Constitucional deverá emitir uma decisão geral, que servirá como jurisprudência para todos os casos semelhantes. Manzini acredita que há boa chance de o tribunal superior decidir pela ilegalidade da lei, mas alerta que a nova estratégia traz riscos, pois as mudanças são recentes e ainda se vive um momento de insegurança jurídica.
— O cliente deve estar ciente que hoje estamos frente a uma nova situação, uma nova tese, que é algo que temos que ir buscar perante a Corte Constitucional. Não é algo seguro e definido como era antes. É muito importante que as empresas deixem muito claro para o cliente quais são os riscos dessa ação — argumenta Manzini.
A contestação às novas normas também é o eixo da estratégia da San Pietro Cidadania Italiana, que também atua em Caxias do Sul. Celania Dall’Agnol, CEO da empresa, também vê claras irregularidades no que classifica como “o decreto da vergonha”.
Ela informa que o corpo jurídico da companhia já está montando processos com a nova argumentação, e se mostra confiante de que a Corte Constitucional vá se manifestar pela ilegalidade do decreto. Segundo Celania, algumas decisões iniciais já apontam para isso:
— Depois que o decreto entrou em vigência, já teve tribunais que deram sentença positiva (para inconstitucionalidade). Num primeiro momento foi negado com base no decreto, mas a defesa usou a inconstitucionalidade e o processo deu sentença positiva. Juridicamente a prova é muito clara.
Não é possível estabelecer prazos para que as primeiras decisões sobre os novos processos sejam tomadas, mas no próximo mês já se terá uma primeira amostra de como a suprema corte encara o tema. Está marcada para o dia 24 de junho uma audiência onde os magistrados vão avaliar um pedido do tribunal da cidade de Bolonha, que em novembro do ano ado fez um questionamento sobre a constitucionalidade da lei de cidadania que estava em vigor até março. Os especialistas entendem que a análise deste caso, que é anterior às mudanças trazidas pelo Decreto 36, já sinalizará qual pensamento da Corte Constitucional para o assunto.
A sessão de 24 de junho é aguardada com bastante expectativa por Lonis Stallivieri. Há 38 anos no ramo, é um dos mais experientes advogados que trabalha com cidadania italiana no Brasil. Apesar de também considerar o Decreto 36 totalmente ilegal, ele tem recomendado aos clientes a ainda não entrarem com processos que tratem da questão da constitucionalidade, pois é preciso ter mais noção sobre o que a corte superior pensa sobre o tema, o que já poderá ser percebido a partir da audiência do próximo mês.
— Eu vou ter os pés mais no chão. Nunca ponho em risco a parte financeira do meu cliente e nem o direito. Até que não tenha uma declaração firme e válida da autoridade competente, esses processos novos eu pretendo convencer os clientes a aguardarem um pouco mais. É um risco — pondera Stallivieri.
Mudança prejudicou mercado, mas trouxe novas oportunidades
Enquanto se organizam para enfrentar os novos desafios jurídicos que envolvem o reconhecimento da cidadania italiana, as assessorias tiveram que se adaptar a uma nova realidade de mercado. Desde 28 de março, quando o Decreto 36 foi publicado, houve muita tensão e dúvida entre os clientes. Por outro lado, o debate sobre o tema aumentou o interesse dos clientes e provocou o aumento da procura pelas agências, embora com menor fechamento de negócios.
Em um primeiro momento, o foco da Nostrali foi atender os clientes já consolidados. Segundo David Manzini, a maior quantidade de negócios que a empresa tinha já eram para ações judiciais na Itália, o que dá garantia aos contratantes. O CEO entende que todos os processos protocolados até 27 de março devem ser julgados pela lei anterior, e por isso não há motivos para preocupações ou desistências.
Em relação às demandas que ainda não foram protocoladas, os clientes serão procurados e orientados para manter os processos, migrando para o formato que vai contestar a constitucionalidade das novas regras. Manzini informa que não haverá, ao menos por enquanto, reajuste nos valores cobrados pelos serviços, e apesar do risco jurídico maior, aconselha que aqueles que têm condição financeira mantenham as ações:
— Aqueles que antes vendiam carro, vendiam casa, para conseguir o sonho do aporte italiano, eu não aconselho neste momento a investirem tudo isso em uma aposta judiciária. Mas quem tem condições, eu aconselho ainda a tentar.
Já o percentual de pessoas que procuravam a Nostrali para apoio em reconhecimentos istrativos em consulados e prefeituras era muito pequeno (cerca de 2% do total), o que impactou pouco a operação. Como estas vias não estão mais disponíveis com a nova lei, ele revela que vai ser oferecido a esses clientes entrar com ações judiciais, e os que não quiserem fazer isso não precisarão pagar pelas etapas que não foram executadas.
Já no caso da San Pietro, o percentual de procura para serviços consulares era bem maior, e respondia por cerca de 20% do faturamento. Celania Dall’Agnol diz que a empresa está orientando esses clientes sobre a impossibilidade de prosseguir com os reconhecimentos istrativos neste momento, e está trabalhando na busca de alternativas como a via jurídica, onde os valores também não serão reajustados.
Por outro lado, ela revela que o debate em torno da cidadania acabou ocasionando a procura da empresa para a prestação de outros serviços:
— Agora nós estamos atendendo à demanda para regularização dos filhos menores, que foi estabelecida pelo decreto. Além disso, aumentou muito a quantidade de pessoas procurando para fazer a emissão do aporte e a atualização do A.I.R.E. (Anagrafe degli Italiani Residenti all'Estero – Registro dos Italianos Residentes no Exterior).
A mesma situação foi notada no escritório de Lonis Stallivieri. Como está aguardando para protocolar novas ações, ele tem insistido com os clientes para priorizar a atualização dos documentos, pois não se sabe o que pode vir no futuro. Segundo ele, muita gente se deu conta de que não havia feito procedimentos básicos de informação aos órgãos consulares, como registros de filhos, casamentos, divórcios ou mortes de parentes que tinham a nacionalidade italiana, e agora há pressa para resolver essas questões.
— Todo mundo começou a ficar desesperado. Agora estou conversando com as pessoas e reando este ponto de vista. Tem pessoas com filhos de 15 ou 16 anos, e nunca registraram. Muita gente não se preocupou – informa o advogado.