
Um arinho parecia observar tudo, pousado no cimo do prédio de tijolos onde por décadas funcionou a mais importante metalúrgica da cidade. Eu sentia o movimento involuntário dos meus pés ao ritmo da apresentação de forró no pequeno palco ao lado. E lia nos dizeres da placa da rua que Plácido de Castro tinha sido um militar idealista brasileiro. Eis a típica seleta de imagens e fragmentos de informação que costuma fisgar cronistas. Vamos a uma possível costura, então.
Devo primeiramente revelar que a situação toda girava em torno da feira de artes e afins que vem ocorrendo uma vez por mês naquela rua, sempre num domingo. A população de Caxias do Sul já abraçou o evento. Tudo a ver com os esforços aguerridos dos lúcidos para que a enorme área antes ocupada pela fábrica tenha uma destinação predominantemente cultural, colorida e diversa como o espectro já visível dos antes e ficantes da feira dominical.
Sim, os amplos espaços de primordiais forjas de incandescentes metais, a provocar rios de suor, agora deve se reverter em prêmio à comunidade — em memória, beleza, leveza, diversão, usufruto do espírito. Repare: se assim não for, é como se o suor derramado nas labutas de milhares de operários tivesse sido em vão, sem qualquer transcendência para além de garantir um salário mensal. Pois então, que a alegria da feira invada as paredes fabris!
Quais novos doces bárbaros, que o povo ali presente se multiplique em hordas risonhas e tome para si o direito ao “delicado da vida”, como diria Clarice Lispector. a da hora de a cidade ir além do esforço imediato pela sobrevivência dos fundadores chegados há 150 anos. Isso não significa abdicar do traço identitário de louvor ao trabalho, mas aprender a traduzir o que nem pôde ser dito pelos anteados. É como ouvir a voz deles na voz de Elis em Aos Nossos Filhos: “Quando colherem os frutos / Digam o gosto pra mim”.
O arinho quieto a espiar a feira me soa agora a um anjo. Asas para voar acima dos pesos da matéria, vontade incorpórea a produzir sonhos e altos ideais. E a placa na rua chama o Plácido de Castro de militar idealista. Eu que já tinha lido sobre ele, questionei ali a pobreza da síntese. Como não dizer que Plácido de Castro foi um gaúcho que, aos 27 anos, liderou a revolução que anexou o território do Acre ao Brasil? O jovem idealista foi à luta e aumentou o tamanho do seu país.
Também por isso é que eu sonho em ver a alegria da Rua Plácido de Castro em domingo de feira se alastrar fábrica adentro.
E que alegria! Caxias ali era puro suco das misturas brasileiras. Minha conterrânea baiana Antônia vendia seus deliciosos acarajés, perto de uma banca de açaí amazônico. No palco dos shows, o Nordeste brasileiro se espelhava no Nordeste gaúcho com músicos locais mandando ver num forró arretado. Obra do pernambucano Giovani Monteiro, que outra vez organizou o ótimo festival Forró da Serra.
E senti meus pés vibrando pelo ritmo que vem de debaixo do barro do chão. E vivi para ver os caxienses dançarem ao som da sanfona, da zabumba e do triângulo. Naquela tarde, pela graça da mistura, Caxias se mostrou como de fato é, plural desde o nome. Dançar leve era uma feliz colheita dos sonhos imigrantes e mais um tesouro das forjas de tanto trabalho.