Coube aos que vieram depois a tarefa de interpretar as motivações do Maio de 1968. Os debates continuam após 50 anos, completados neste mês. Em uma entrevista concedida ao filósofo Jean-Paul Sartre no calor dos acontecimentos, Cohn-Bendit declarou que a força do movimento era sua "espontaneidade incontrolável". Criar uma organização ou definir um programa, em seu ponto de vista, "iria inevitavelmente nos paralisar". Refletindo sobre os 50 anos do movimento em uma entrevista recente à New York Review of Books, Cohn-Bendit afirmou que aqueles "libertários de esquerda" eram anticapitalistas e anticomunistas ao mesmo tempo: "Não tínhamos a intenção de lançar um novo Partido Comunista, mas simplesmente descobrir como construir novas redes e alianças – in situ e envolvendo trabalhadores migrantes pela primeira vez".
Os slogans ofereciam algumas pistas: "Seja realista, peça o impossível", "A barricada fecha a rua, mas abre o caminho" e "É proibido proibir", que no Brasil virou título de uma canção de Caetano Veloso contra a ditadura militar, apresentada por ele e pelos Mutantes, sob vaias, na eliminatória paulista do 3º Festival Internacional da Canção daquele ano. Foram os herdeiros do segmento privilegiado da sociedade sa que saíram às ruas, como observa o documentarista João Moreira Salles, que recentemente mergulhou em imagens da época no filme No Intenso Agora (2017). Embora falassem da queda do presidente Charles de Gaulle, da resistência à Guerra do Vietnã e de socialismo, o que aqueles jovens queriam era “viver de outro modo”, afirma Salles em entrevista a GaúchaZH:
Em um ensaio sobre 1968 na França, na Tchecoslováquia e no México, Carlos Fuentes sugere que as derrotas dos movimentos estudantis e do "socialismo com rosto humano" de Dubcek foram "fracassos pírricos", ou seja, derrotas imediatas que resultaram em vitórias a longo prazo. Para o escritor mexicano nascido no Panamá, o partido socialista francês saiu renovado daquele maio histórico.
Em 1981, François Mitterrand foi eleito presidente na França, depois de 23 anos de governos conservadores. Um dos líderes da dissidência de Praga em 1968, o dramaturgo Václav Havel foi eleito presidente interino da Tchecoslováquia em 1989 e confirmado em 1990, tornando-se o primeiro líder não comunista desde 1948. "E, no México, por fim", prossegue Fuentes, "não é compreensível a história do país de 1968 para cá sem a história do país antes e durante o ano de 1968". O economista, psicanalista e crítico de cinema Enéas de Souza analisa:
– O projeto da utopia de Maio de 1968 vinha com uma transformação profunda nas relações políticas, econômicas, sociais, culturais e subjetivas na direção de uma sociedade socialista e libertária.
Por razões de combate político, a classe operária não se aliou aos estudantes, artistas e intelectuais, e acabou por ocorrer uma cisão irrecuperável entre a política e a cultura. Havia o temor de uma derrota irreversível do proletariado, por isso o PCF (Partido Comunista Francês) resistiu a um projeto mais amplo, e, da parte da atuação cultural, havia a necessidade de uma ação imediata e integrada das duas áreas.
A despeito do julgamento da História, o espírito de 1968 ainda vive hoje em manifestações contra o status quo, como as que eclodiram em junho de 2013 no Brasil. Essa é a avaliação do filósofo Moysés Pinto Neto, professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), para quem não há dúvida sobre a existência desses ecos:
– Primeiro, é preciso ver que a forma de organização baseada em redes horizontais e protagonismo jovem nasce na década de 1960 como uma alternativa ao centralismo do partido, a mediação pelos sindicatos e o culto ao líder. Além disso, o autonomismo atual é consequência dessa postura independente da burocracia partidária e constituinte do seu próprio campo. Quando, em 2013, a menina afirma ao jornalista: "Anota aí, sou ninguém", está fazendo o mesmo tipo de questionamento da liderança carismática que faziam os jovens de 1968.
Em sua conferência no Fronteiras do Pensamento de 2008, por ocasião dos 40 anos do movimento, o pensador francês Edgar Morin observou que os anos 1960 produziram um importante fenômeno histórico: a autonomização da adolescência. Diferentemente do que ocorria nas sociedades tradicionais, nas quais os indivíduos am da infância diretamente à vida adulta, aquele momento foi de constituição de uma cultura da adolescência, com sua música (o rock), seu modo de vestir (roupas coloridas, a minissaia) e seus hábitos. O sexo livre e desencanado era oportunizado pela pílula anticoncepcional, em uma época na qual a aids ainda não era uma ameaça. Os jovens aspiravam, segundo Morin, à autonomia (o desejo de serem livres) e à comunidade (uma vida em comum), duas demandas aparentemente contraditórias.
Para a jornalista Regina Zappa, coautora do livro 1968 – Eles Só Queriam Mudar o Mundo (Zahar), ao lado de Ernesto Soto, que ganhou segunda edição neste ano, o legado do movimento diz respeito, sobretudo, ao comportamento, aos direitos civis e às liberdades individuais:
– Os estudantes ses começaram reivindicando igualdade e mudança nas universidades, onde os professores falavam aos alunos quase sempre de um púlpito, tornando-os de certa forma superiores, e onde eram proibidos dormitórios mistos. A universidade mudou. Na luta por direitos iguais, surgiu o feminismo. A relação entre pais e filhos tornou-se menos rígida, diminuindo o choque entre gerações. A luta coletiva por liberdade individuais ganhou espaço. Mas, apesar dos avanços, o que se aprende com 1968 é que as conquistas não são definitivas e podem sofrer retrocesso se não se permanece atento na luta.
É o que estão fazendo as feministas ao utilizar a internet e as redes sociais como ferramentas de empoderamento para conferir novo fôlego a um movimento que constituiu uma das mais duradouras conquistas dos anos 1960 – embora o feminismo tenha nascido muito antes. A desconstrução do estereótipo da mulher ideal não veio sem lutas, como lembra a professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS Rita Terezinha Schmidt:
– Sobretudo, havia muita reserva, e mesmo certa estigmatização, do termo "feminista", não só por causa da propagação do estereótipo da mulher em guerra contra os homens, mas também porque era visto como uma importação made in the US. Para a esquerda brasileira, que considerava os EUA como mentores do golpe que destituiu o então presidente João Goulart, o feminismo era um movimento sexista e pequeno-burguês. Por outro lado, para a direita conservadora, era visto como um atentado contra a tradição da família e dos bons costumes da sociedade.
Rita não crê haver, no cenário nacional, identificação das jovens de hoje com o feminismo da década de 1960, embora elas sejam "beneficiárias do saldo das lutas daquele período, cujo lema ‘o pessoal é político’ ainda está na ordem do dia":
– Há um novo feminismo no ar, insurgente e plural, catalisador de energias de vários grupos de minorias sexuais que lutam pelo direito de questionar imposições ditas "naturais" que sempre estiveram a serviço de exclusões de modo a ampliar o conceito de humanidade.
De certa forma, 1968 ainda está presente: desafiar a ordem nunca sai de moda. Sim, algumas coisas terminaram depois de maio, mas outras começaram. Para Moysés Pinto Neto, as demandas daqueles jovens "atravessavam e rompiam a diferença entre coletivo e individual, público e privado, indivíduo e sociedade". Na entrevista recente à New York Review of Books, Daniel Cohn-Bendit conta que, certa vez, foi abordado por um homem aparentando ter 10 anos a mais do que ele. Era um membro da CRS, a reserva da polícia sa encarregada de manter a ordem pública, contra a qual os jovens de 1968 haviam lutado. "Sr. Cohn-Bendit, quero agradecê-lo", disse o homem. "Foi uma grande época, merci."
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