A Utopia, de Tomas Morus, publicada em 1516, inscreveu no vocabulário da humanidade uma palavra que ao mesmo tempo significa não/lugar (u-topos) e lugar de completa felicidade. Nasceu como um novo gênero literário. Seu relato ficcional abriu caminho para o vírus do sonho, instigou a revolta contra uma realidade que se apresenta como única possível e convocou o desejo na construção de outras lógicas de vida. Morus escreve: "Não renunciamos a salvar o navio na tempestade só porque não saberíamos impedir o vento de soprar".
Os jovens de 1968, dos EUA ao Japão, do México à Tchecoslováquia, do Brasil à França, não sabiam exatamente como parar a ventania da violência de Estado e do autoritarismo que impregnava a vida em todas as suas instâncias, mas queriam salvar o navio da tempestade da discriminação racial, da desigualdade, das ditaduras sangrentas e das guerras insanas como a do Vietnã. O espirito de revolta seguia a indicação de Emil Cioran, em seu ensaio Historia e Utopia, "uma sociedade sem utopias está condenada à esclerose e à ruína". As estratégias de luta eram criadas em ato, sem as diretrizes de partidos políticos e sem reuniões prévias.
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Em Paris, a Escola de Belas Artes era uma verdadeira usina de guerra, mas cujo armamento produzido eram cartazes, poemas, slogans que se disseminaram pelos muros de Paris e que até hoje guardamos como pequenas chamas de esperança. "Seja realista, demande o impossível", "Faça amor e recomece", "A poesia está na rua", "A barricada fecha a rua mas abre a via", "É proibido proibir". Essa relação entre arte e política na Escola de Belas Artes de Paris dura até hoje. É no anfiteatro da instituição que ocorrem as reuniões semanais do grupo ativista Act Up que, no início dos anos 1990, lançou uma grande mobilização para que a sociedade sa reconhecesse a importância da prevenção do tratamento da aids.
Em maio de 1968, a polícia se preocupava não só em conter os manifestantes, mas também arrancar os cartazes das paredes, pois sabiam que essas imagens eram uma arma potente. A fúria capitalista entrava em cena ainda com "colecionadores" recolhendo os cartazes para negociar o "futuro". O ateliê da escola chegou a rejeitar US$ 70 mil oferecidos por duas grandes editoras interessadas em adquirir o material para fazer uma publicação. Jean Claude Leveque, um dos estudantes de arte, reagiu, na época: "A revolução não está à venda".
Em todos esses eventos, articulações com as artes são indissociáveis, permitindo afirmar que, desconsiderar a cultura ou acentuar formas de censura, é exterior à democracia, ao seu exercício cotidiano que implica discutir/conviver com as diferenças.
Hoje, não se pode mais pensar política sem arte e literatura. A política tem de ser criativa, inventar algo novo. Mesmo que, na atualidade, a frustração seja grande. Georges Didi-Huberman, historiador e curador da exposição Levantes, nos dá um precioso exemplo tomado da mitologia grega. Os titãs Atlas e Prometeu foram derrotados e castigados pelos deuses. Entretanto, fizeram a transmissão do saber e do fogo aos homens. Puderam sustentar um desejo de que a humanidade enfrentasse o peso da opressão nos tempos sombrios.
As sociedades são avaliadas em sua capacidade de produzir arte nas mais diversas formas de expressão. É uma forma de resistência à barbárie e à posição medíocre que somente vê a política como um negócio. Fernanda Torres afirmava outro dia, aqui mesmo no caderno DOC de ZH (de 21 e 22 de abril): "Um país que odeia sua cultura é um país que se odeia". Afirmação deve ser complementada com o reconhecimento de que ódio e paixão podem ser duas faces da mesma moeda e que a cultura é dinâmica, fragmentária e articuladora de restos que a sociedade não consegue incluir. Dando voz e visibilidade ao que de outra maneira cairia no esquecimento.