É exatamente isso, trago esse olhar. Não só como mulher negra e da periferia, apesar de as mortes geradas no "caminho do aborto ilegal" serem na maioria de vidas negras. Presenciamos, recentemente, uma menina, violentada em casa, que não conseguiu realizar o procedimento pelo tempo avançado de gestação. É uma criança, de 11 anos, e não me refiro à legalização, mas regulação do aborto via SUS (Sistema Único de Saúde). Pela ótica da dificuldade de o, mesmo os com origem na violência, já previstos, percebe-se que o tema deve ser regulamentado pelo viés da saúde pública. É menos danoso permitir o o dentro do serviço de saúde. Mas o tabu que envolve o tema prega que, ao regulamentar, todo mundo sairia abortando. Não. Só reproduz esse discurso quem não vive a realidade, está na "caixinha", no conforto da "bolhinha". É primordial pensar de forma séria o aborto dentro das políticas públicas do SUS.    

E as drogas?
A realidade está posta. Na condição de mulher, mãe e, agora, agente política, sei que a discussão é ampla. É uma rede que fomenta a grande organização do tráfico de drogas e de armamentos. Não é só o traficante de boca – sempre o mais visado –, mas os grandes figurões. Por que há tanto tempo se fala em combater o crime organizado e, de fato, não se combate? É que não é o figurão quem morre.  As drogas, as armas, chegam em contêineres, atravessam fronteiras. Existe o cara que pensa e manda em todo o processo e não é visto. Seria raso e irresponsável falar em legalizar ou não as drogas. Não sou mulher rasa, gosto de profundezas, como boa filha de Oxum. É nas profundezas que encontraremos convergência. O crime é organizado. A segurança pública, não. É só chegar atirando e olhar depois? Não. É sobre em quem eu vou atirar, por que disparo e por qual razão quem receberá o tiro está na mira. Eu também quero segurança, meu filho vai à escola e quero que ele volte. Hoje, tenho medo do traficante, do ladrão e da polícia. É necessário romper com o ciclo de violência. Só se faz isso quebrando estruturas. É preciso ar os movimentos sociais que têm números reais do que acontece nas comunidades. Não se trata do que cada um opina, mas da verdade das periferias. É lá que a segurança e os serviços públicos devem ser aplicados.  

Que avaliação faz sobre as reformas estruturantes (istrativa e tributária)?
São necessárias e urgentes. Sofremos, por exemplo, um corte de receitas, oriundas do ICMS retirado da gasolina. Para o RS, é considerável a perda de arrecadação. Pensou-se em reduzir o preço dos combustíveis, mas não nas consequências. Estamos na iminência de uma intervenção federal. A campanha está focada nessa questão. A gente já vê os reflexos, quando as pessoas vão ao mercado e não têm dinheiro para comprar uma caixa de leite. Essas coisas precisam frequentar as esferas federativas com a noção de que a quantidade de pessoas em situação de rua e abaixo da linha de pobreza cresceu, e muito, por aqui.    

Que resultados a atual perspectiva econômica deverá produzir nas políticas públicas? Deixará como legado a fome e a miséria. As restrições aos investimentos públicos geram sangria, que, como sempre, vai estourar na população. Perdemos o PAA (Plano de Aquisição de Alimentos), em que o governo comprava produtos orgânicos de pequenos produtores rurais para a alimentação na rede de ensino. Essa restrição, bem como a precarização do funcionalismo, instaura o caos. O compromisso primeiro é a renegociação da dívida. Do contrário, o que está ruim ficará pior, com nova explosão de pobreza. A gente que é da periferia entende, porque vivemos a realidade.

A senhora citou dificuldades financeiras e, em paralelo, o orçamento secreto conta com R$ 16 bilhões carimbados para o uso de parlamentares.  
É escandalosamente cruel, principalmente quando se tem 3,3 milhões no mapa da fome. Pensar em um orçamento secreto para o uso pessoal de políticos, com transparência zero... As pessoas perderam a hombridade. Acompanhei o caso do cidadão que se negou a entregar uma cesta básica porque a senhora que a receberia abriu o seu voto. É zombar da população que a fome. Aprendi, na escola, os deveres e os limites do Estado. Isso caiu por terra e, com essa noção, tombou o sentimento de pertencimento à pátria. Não falo só da militarização, mas do sentimento. Eu tenho orgulho de ser brasileira, apesar de todas as dificuldades, especialmente as que envolvem a periferia e as mulheres pretas. Sou fruto de discursos – que ouvia com minha mãe e meu pai – do (Leonel) Brizola, do (Pedro) Simon. Eles falavam da soberania do povo, frente aos "interesses". Essa consciência de pertencimento ao espaço político precisa ser retomada.  

A chamada "militarização da política" está relacionada com o que a senhora considera pertencimento?
Acredito que sim. O Senado não precisa de mais fardas, necessita de mais turbantes. Refiro-me ao que o turbante expressa: identidade. Em 2020, concorri a um cargo eletivo. Fui repreendida ao enviar as fotos oficiais para a urna. Disseram que eu teria de retirá-lo. Alegaram que o turbante "descaracterizaria" o candidato. Rebati que "eu" estaria "descaracterizada" se o tirasse. Enviamos uma carta ao TRE (Tribunal Regional Eleitoral) e nosso argumento foi aceito. Abrimos precedente para toda uma população que tinha de se apresentar nas urnas travestida de outra coisa. No fundo, o que buscamos é o direito de existir. Meu turbante foi a maneira de alcançar a libertação. A revolução está acontecendo. Que sejamos sementes para plantar nas mentes férteis que queremos é "ser quem somos". E ponto. Quando falo da farda na política, é porque a militarização "desconstrói" – não em sentido pejorativo, mas porque cumpre homogeneizar identidades, que am a remeter-se àquela corporação em específico. Uma vez dentro da estrutura política, em que as decisões valem para toda a população, é preciso entender quem é essa população e que ela é formada por identidades diversas. Me posiciono para que possamos buscar e promover, de fato, a igualdade. Não há como fazê-lo sem equidade.

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