
Assisti recentemente a um vídeo de Ana Aurora Borges, filha do fotojornalista Antônio Gauderio, gaúcho de Ijuí que trabalhou grande parte da vida na Folha de São Paulo, tornando-se conhecido e premiado pelas fotografias de denúncia. Ele fez um pouco de tudo durante a trajetória de mais de 20 anos lá, de exploração de mão de obra infantil a futebol, e é possível que você já tenha visto alguma imagem clicada por ele sem saber a autoria. Em 2008, ele sofreu um acidente doméstico, bateu a cabeça e precisou remover massa encefálica. Entre várias sequelas cognitivas, uma das mais significativas foi a perda da memória — “meu pai zerou o HD”, disse ela.
Gauderio precisou reaprender a andar, a falar, a comer e se afastou da fotografia. Eis que a filha mais velha, que na época do incidente tinha 13 anos, durante uma atividade no curso de Letras — trabalhar com crônicas de denúncia —, percebeu que tinha uma fonte de conhecimento dentro de casa. Decidiu, então, revisitar o vasto acervo do pai composto por fotos, vídeos e negativos e, diante de tanta riqueza guardada, teve a ideia de reapresentar o trabalho de Gauderio a ele mesmo, numa tentativa de fazê-lo ver quem ele é/foi.
E o relato é extremamente comovente: ele, que sempre trabalhou com o registro da memória, perdeu a memória e está tendo a oportunidade de rever toda essa memória porque a registrou previamente. Assim como Ana Aurora, também achei a premissa extremamente filosófica. Existe outro elemento que me toca particularmente nessa experiência: a tentativa de mostrar quem a gente é, a partir do olhar alheio. Se pararmos para pensar, pessoas que nos amam costumam nos ver com uma generosidade que nem sempre nutrimos por nós mesmos — e ser acarinhado num processo de (re)descobrimento é mágico.
Outro motivo que me toca é minha leve obsessão — se é que alguma pode ser leve — por registrar momentos ordinários. Obviamente não deixo de contemplar o presente porque preciso guardá-lo, mas guardo justamente para poder contemplá-lo no futuro. E a tentativa funciona tanto que decidi voltar ao acervo de imagens do meu celular para escrever essa crônica e encontrei preciosidades: Lilica, nossa cachorrinha que morreu há alguns anos, comendo alcachofra, a primeira vez que levei Mana no Bar do Luizinho, minha estreia amassando uva com os pés, a visita a uma escola para falar de jornalismo, um júri de concurso de soberanas em alguma cidade do interior, jogos de futebol no estádio, lançamento de livros de pessoas queridas, poesia escrita no braço de uma amiga poeta, poses de cabeça para baixo no pilates, meu pai cozinhando, encontros prosaicos em família, brindes improváveis, shows em lugares diversos... E esse pequeno momento trouxe uma satisfação tão instantânea que me percebi sorrindo ao olhar para elas.
Fotografias são a materialização de momentos vividos. Como lembrar dos acontecimentos banais do cotidiano não é tão fácil, ao registrá-los ganhamos uma espécie de portal capaz de reacender nossas pequenas alegrias infinitamente.