
Naquele último dia de Touro em que os primeiros imigrantes italianos teriam chegado aos altos da Serra gaúcha, em 20 de maio de 1875, o planeta Mercúrio já transitava lá na frente, no signo de Gêmeos. Fiel ao seu significado astrológico, Mercúrio sugeria imediatas interações com o novo ambiente. Representava os aprendizados e as trocas cruciais para que se cumprisse o projeto da imigração. E uma figura real encarnou Mercúrio naquela empreitada de guiar os colonos na subida das encostas serranas em meio à floresta: o indígena Luís Antônio da Silva Lima, conhecido então como Luís Bugre.
Desde que li e ouvi por primeiro esse relato fundador, fiquei fascinado por saber que tinha sido um nativo da originária etnia kaingang o condutor dos forasteiros às terras nas quais viveriam. Já era ele um indígena aculturado, basta ver o nome e o sobrenome portugueses. Como dominava de berço cada palmo daqueles verdes peraus, ninguém melhor que Luís para ser vaqueano, termo regional referente ao conhecedor dos caminhos e atalhos e que, por isso, serve de guia aos demais. Ora, nada mais mercuriano que um vaqueano, encarnação do mitológico senhor das estradas e caminhos.
Com a intenção de escrever aqui sobre Luís, fui atrás de pistas do homem. Nas pesquisas, descobri logo que não sou o único fascinado pelo vaqueano da Serra: há muitos artigos e dissertações de historiadores sobre ele, com os mais diferentes enfoques. E quanto mais camadas eu descobria, mas o associava ao arquétipo astrológico de Mercúrio. O antigo deus mensageiro dos romanos, sincretizado do Hermes grego, ligava mundos diferentes, o que o dotava de habilidades comunicativas, além de astúcias e ambiguidades. Era adorado nas encruzilhadas, confluências de rotas, como cabia a uma divindade que entendia de fronteiras, assimilações e diferenças.
A aculturação de Luís Bugre começara aos 11 anos, quando fora capturado pelos colonos alemães após uma tentativa de pilhagem dos kaingang às lavouras no Vale do Rio Caí, em 1847. O menino teria sido alvejado num joelho, o que impediu sua fuga com os demais. Foi então adotado e batizado por um colono lusitano, daí o sobrenome. E cresceu ali, aos pés da Serra, entre lusos e alemães, aprendendo línguas e costumes, mas mantendo periódicos encontros com sua tribo. Consta que detestava ser chamado de bugre, termo comum à época mas já carregado de racismo.
Em 1867, oito anos antes da chegada dos italianos à Serra, Luís fora acusado de traição pelos alemães. Apontaram-no como colaborador no rapto da mulher e do casal de filhos de um colono holandês pelos kaingang. Apenas o rapaz escapara com vida das mãos dos indígenas, terminando por incriminar Luís no retorno à comunidade. Este, então, se retirou, sozinho e amargurado, para mais distante. Tinha em torno de 40 anos quando atuou como vaqueano na comitiva das primeiras famílias italianas aos altos da Serra.
Fontes afirmam que Luís depois teria se casado com uma italiana e até se instalado também como colono na região. Teria sido dele a sugestão de mudança da sede colonial para uma área outrora ocupada por seu povo, um tal Campo dos Bugres, hoje Caxias do Sul. Pode haver personagem mais cheio de nuances culturais, fronteiras e mistérios que esse abridor de caminhos da história local?