Como não gostava de desagradar ninguém, apanhou o casaco. Antes de sair para encontrar os amigos, despediu-se com as mesmas palavras de sempre: “Até mais”. E se foi. Nos primeiros dias após a perda, a mãe chegava a ouvir o som do portão à tardinha, no horário em que a filha retornaria do trabalho. Mas ela nunca chegava. Sete meses depois da despedida, Marisane ainda tem dificuldades para proferir a palavra “cemitério” e não gosta que se refiram à jovem como “falecida”.
— Às vezes, de tardezinha, me perguntam: “Aonde vai?”. Eu digo: “Vou lá na Maila”. Não precisa dizer essa palavra (cemitério). É muito pesado. Hoje é Dia das Mães, é um dia muito pesado. "Ah, mas tem as outras duas meninas". Pode ter 10, 20 filhos, mas cada um é um. Aquele um sempre vai te fazer falta — desabafa Marisane, que recebeu a reportagem de GZH em sua casa na tarde de 14 de maio.
A mãe carrega junto ao pescoço uma corrente com três corações. Cada um representa uma das filhas que pariu. Deu a elas nomes semelhantes: a do meio chamou de Maira, hoje com 18 anos, e a caçula Maika, que completou 14. O primeiro colar havia sido um presente das filhas pelo Dia das Mães. Eram originalmente três pingentes com formato de uma menininha. A mãe perdeu a correntinha, e apressou-se em encontrar outra.
— Tem de ser três. Não achei as menininhas, então são coraçõezinhos — conforma-se.
Temendo perder ainda mais, imprimiu todas as fotos que tinha da filha no celular. Entre as imagens, está de uma comemoração que participaram no início de outubro do ano ado numa cafeteria. Durante a confraternização, Maila anunciou:
— A próxima festa vai ser a minha formatura e vai ser aqui.
Faltava um ano e meio para a jovem concluir o curso de contabilidade.
— Agora, no fim do ano, ela ia se formar, e não chegou... — desabafa a mãe, sem conseguir concluir a frase.
Outra das imagens de Maila está depositada logo na entrada da casa, na cozinha, ao lado de Nossa Senhora Aparecida — a santa inspirou o segundo nome dado à primogênita. No quarto da caçula, um varal com 10 fotografias das irmãs pende sobre a cama, e um ursinho de pelúcia que pertencia a mais velha repousa ao lado. No mesmo segundo andar, ainda estão alguns pertences que integravam o quarto improvisado: o espelho de moldura dourada, um quadrinho de uma menina loira na formatura da pré-escola, aos seis anos, e o roupeiro, que a mãe brincava ser pequeno demais. As irmãs aram a compartilhar as roupas dela — já que Maila não se furtava em emprestar o que tinha.
Na sala da casa, num porta-retrato, há um registro com a família inteira abraçada. Maila aparece junto ao pai, o motorista Cláudio Wagner, 49 anos, e da irmã mais nova. Do outro lado, estão a mãe e Maira. Marisane planeja transformar a imagem num quadro grande para pendurar na parede. A mãe guarda também a última imagem da filha. Naquela noite, Maila estava sentada numa cadeira na calçada na área central de Salto do Jacuí, município vizinho a Estrela Velha. Tomava chimarrão, quando pediu para tirarem uma foto dela. Ao mesmo tempo, trocava mensagens com amigos pelo celular.
— Às 19h23min, ela já não respondeu mais. Foi quando aconteceu — descreve o pai.
No ano de 2022, foram concedidas 136,4 mil medidas protetivas para mulheres no RS — um salto de 33,5% em relação ao ano anterior (veja detalhes no gráfico abaixo). Os dados são da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid) do Tribunal de Justiça do Estado. Em média, 373 determinações contra agressores foram concedidas por dia. Entre as mais comuns, estão a proibição de se aproximar da vítima e de seus familiares, ou mesmo de manter contato com ela, e afastamento do lar.
Maila foi uma das mulheres a procurar ajuda dos órgãos policiais e do Judiciário na tentativa de se livrar de uma relação conturbada que havia durado cerca de dois anos. A série de violências que culminou com seu assassinato se iniciou bem antes. A família acredita que parte delas tenha sido silenciada.
Do jeito que ela era, não falava para não deixar a gente preocupado. Depois que acontece, a gente fica tentando achar uma explicação, e não acha.
MARISANE WAGNER
Mãe de Maila
— Do jeito que ela era, não falava para não deixar a gente preocupado. Depois que acontece, a gente fica tentando achar uma explicação, e não acha — diz a mãe.
— Acho que com medo, não sei, ela não queria falar. A gente estava desconfiado desde fevereiro, de que alguma coisa não estava certa. Em maio, ela resolveu falar que não queria mais ficar — complementa o pai.
Até então, Maila não havia relatado nenhuma violência física, mas disse aos prantos à mãe, ao telefone, que a relação não dava mais certo. Os pais rumaram até Jacuizinho, onde ela estava morando, e resgataram a filha. Voltou a trabalhar em Estrela Velha, inicialmente numa casa de família, e mais tarde numa empresa. Até aquele momento, a jovem não havia relatado nenhuma agressão.
No início de julho, Maila estava num evento e, enquanto dançava, foi atingida por um soco pelo ex. No dia seguinte, contou ao pai o que havia acontecido. Foi quando decidiram procurar ajuda da Brigada Militar. De lá, seguiram com os policiais militares até o município de Arroio do Tigre, a 26 quilômetros dali, onde ficava a delegacia que poderia receber o registro. Maila contou que o ex-namorado, inconformado com o fim do relacionamento, estava lhe perseguindo, perturbando e fazendo ameaças.
— Ele dizia que se a Maila não fosse dele não ia ser de mais ninguém — recorda a mãe.
Em razão desses relatos, a polícia pediu medidas protetivas e a juíza Márcia Rita de Oliveira Mainardi, de Arroio do Tigre, determinou que Juarez Júnior Ramos da Silva, 24 anos, não poderia se aproximar da jovem. Mas isso voltou a acontecer. Em setembro, Maila trabalhava na casa de uma família, quando avistou o ex dentro de um veículo no portão. Ela disse ter visto uma arma de fogo na mão dele e que precisou se esconder.
No mesmo dia, a delegada Graciela Foresti Chagas pediu a prisão preventiva dele. No documento, alertou para o risco que corria a vítima, por ter sido ameaçada com arma e pelo fato de o ex não respeitar as ordens judiciais. "Medidas alternativas à prisão não serão suficientes para cessar o risco que ele oferece", ressaltou. O pedido foi encaminhado ao Judiciário em 8 de setembro de 2022. Naquele período, Marisane conversou com a filha, que estava confiante.
— Mãe, a juíza vai me ajudar, porque ela é mulher também — acreditava Maila.
Em 15 de setembro, Júnior se apresentou na delegacia e foi preso, mas, dois dias depois, foi solto por nova decisão judicial, que revogou a prisão. Apesar do relato de Maila, a magistrada entendeu ter sido comprovado que não houve descumprimento da medida protetiva. Segundo o Judiciário, foi cumprido mandado de busca pela Polícia Civil e não foi localizada a arma, e a defesa apresentou declarações e notas fiscais para sustentar que o cliente estava em Estrela Velha para adquirir peças para a oficina da qual era proprietário, não com intuito de perseguir a ex.
Nas semanas seguintes, a família de Maila não soube mais notícias do rapaz. Pensaram que a situação havia finalmente se acalmado até aquele domingo. Quarenta e três dias após Júnior ser solto, Maila estava sentada com os amigos, quando avistou o ex se aproximando. Ao perceber que ele empunhava uma arma, só teve tempo de se erguer da cadeira. Três disparos, no rosto, no pescoço e no abdômen, impediram a filha de Marisane e Cláudio de voltar para casa. Logo em seguida, o atirador voltou pelo mesmo caminho de onde veio, dobrou a esquina, e disparou contra o próprio peito.
— Se fosse uma coisa que nunca tinha ido atrás. Muitas vezes acontece quando a mulher não vai, não procura e daí acontece. Mas ela tinha, ela acreditava, confiava, sabe — lamenta a mãe.
— É um vazio. É um vazio que a gente tem que suprir. Algo que não precisava ter acontecido — lamenta o pai.
Assim como aconteceu com Maila, em quase metade dos 21 casos é possível apontar que o agressor descumpriu a medida protetiva antes do crime. Não há como precisar todos, já que nem sempre a vítima faz o registro. Sete mulheres comunicaram à polícia o descumprimento da medida protetiva — em outros três familiares e amigos relataram que ela não chegou a registrar.
Promotora de Justiça do Ministério Público do RS, do Grupo Especial de Prevenção e Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Gepevid), Bianca Acioly Araújo defende que se amplie a possibilidade de a mulher informar a aproximação do agressor.
— É preciso reforçar a existência da Patrulha Maria da Penha e a atuação da Guarda Municipal como fiscalizadores da medida protetiva, para que essa vítima receba em casa ou no seu trabalho a visita daquele patrulheiro. O Estado precisa saber que esta pessoa está descumprindo uma ordem judicial. Quando o agressor, tendo MPU (medida protetiva de urgência), se aproxima da vítima, ele comete um crime contra o Estado. Um argumento comum é de que ela deixou eu me aproximar. A medida, enquanto não revogada por ordem judicial, está valendo e ele está praticando um crime — alerta a promotora.
Segundo o Tribunal de Justiça do RS, no ano ado houve aumento de 11% nos casos de prisões por violência doméstica. Foram 4.142 presos, enquanto em 2021 tinham sido 3.727.
Fonte: Polícia Civil e Poder Judiciário do RS
Brigada Militar
Polícia Civil