Há três meses, o confinamento mudou totalmente a nossa rotina. Para muitas mulheres, os dias e dias em casa na própria companhia têm sido um convite a olhar mais para si mesmas, reavaliar prioridades. E refletir sobre tudo aquilo que parecia estar no piloto automático, como as idas ao salão para retocar os fios brancos.
– Diante da ameaça da vida, somos obrigadas a entrar em contato com nossas vulnerabilidades, olhar para nossas sombras, visitar nossos questionamentos e medos – explica a psicóloga Pamela Magalhães. – Esse momento está nos permitindo olhar de perto para o que verdadeiramente importa. Não estamos tão preocupadas com o cabelo branco, mas em como lidar com tudo isso que vivemos hoje. Como conseguir levantar da cama e ter saúde.
Para muitas, a reclusão forçada está promovendo um um momento de reflexão e redescoberta, como afirmam as três mulheres que compartilharam suas histórias nesta reportagem. Ana Carolina, por exemplo, percebeu que preferia curtir mais tempo com os filhos a ar horas no salão todo mês. Para Cris, a faxina no armário serviu para rever seus hábitos de consumo. E Renata está tentando, dia após dia, se cobrar menos, como mãe e como mulher.
Mesmo em meio ao estresse da nova rotina, à crise econômica, ao medo da contaminação e à sensação de impotência com o aumento do número de vítimas da covid-19, elas escolheram tentar levar algo de positivo desse período difícil.
Coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza da PUC-Rio, a psicóloga Joana de Vilhena Novaes acredita que esse olhar mais empático com nós mesmas pode, sim, sobreviver para à pandemia do coronavírus – pelo menos por um tempo.
– Vai depender muito da consciência das pessoas, que muitas ainda não conseguiram ter. E da extensão da recessão da economia. Cuidados com a aparência, por exemplo, estão ligados a poder de consumo. À medida que não puderem consumir, a tendência é que haja um relaxamento – pondera. – Mas há, sim, um relaxamento no que a gente tolera, no que não a ou acha que não pode. Estamos mais realistas e menos idealizadas do que deve ser o próprio corpo, por exemplo, e de que tudo bem, não precisa se martirizar se não estiver de acordo com os padrões estéticos.
Na prática, acredita a psicóloga Juliana da Rosa Pureza, não é que as exigências em ser a mãe perfeita, a profissional infalível e a mulher mais atraente deixem de existir. O que talvez mude, para quem está se propondo a esse processo de autoconhecimento, é a forma de enxergar as próprias fraquezas e os erros. Para a professora da Feevale, podemos aprender a flexibilizar as (auto)cobranças e exercitar mais a autocompaixão. Sobretudo, quando dividimos com outras mulheres as nossas angústias – e percebemos que não estamos sós.
Não estamos tão preocupadas com o cabelo branco, mas em como lidar com tudo isso que vivemos hoje.
PAMELA MAGALHÃES
psicóloga
– Quando você coloca mulheres para compartilhar e elas se dão contam de que não estão sozinhas, de que todo mundo a por isso,
o peso daquela falha diminui. Consigo ser mais comiva com essa dificuldade, aceitá-la e ficar mais em paz com isso – finaliza.
Adeus, tintura
Há pouco mais de três meses, Ana Carolina Moreno Uberti esteve no salão de beleza pela última vez para retocar a tintura ruiva nos fios. A data está na ponta da língua: foi no dia 10 de março, cerca de uma semana antes do Estado iniciar as medidas de distanciamento social em razão da pandemia.
Àquela época, deixar de repetir o ritual de beleza todo mês não estava nos seus planos – até porque ela sempre adorou brincar com o visual dos fios. Já foi loira, morena, fez luzes e, mais recentemente, havia entrado para o time das ruivas. Agora, é mais uma das mulheres que escolheram deixar os fios grisalhos à mostra.
– Estava me incomodando ter que retocar com frequência. Quando percebi, já estava há 45 dias sem pintar – recorda. – Então pensei: “Quer saber? Vou assumir esses brancos”.
Ana Carolina nunca foi daquelas que curtem ar horas na cadeira do cabeleireiro. Com a chegada dos filhos, João Pedro, seis anos, e Rodrigo, dois, o ritual de beleza era mais uma tarefa a riscar da lista que precisava dar conta.
– Com dois meninos, meu tempo é precioso! – ressalta, entre risadas.

Mas havia um porém: lidar com os pitacos não solicitados sobre sua escolha talvez não fosse tão simples assim. No pós-parto dos filhos, quando deixou a tintura de lado por 40 dias, ela conta que era comum receber olhares de pena por não estar “tendo tempo para cuidar de si”. Agora, temia que a transição capilar asse uma má impressão no ambiente de trabalho. O fato de estar no sistema de home office, porém, acabou facilitando o processo para ela, que é sócia de uma agência de marketing:
– A mulher que não pinta o cabelo, muitas vezes, é vista como desleixada. Pensava: como será numa reunião de trabalho? – conta. – A quarentena acabou amenizando isso.
Cabelo branco tem a ver com maturidade, aceitação. Com a própria libertação.
ANA CAROLINA MORENO UBERTI
Três meses depois da última sessão de pintura – que repetia desde os 32 anos –, Ana Carolina encara a fase mais difícil da transição capilar: as raízes do cabelo estão mais claras, enquanto o comprimento dos fios segue avermelhado. Mas a espera compensa, ela sabe bem. No final do ano ado, já havia experimentado um processo semelhante ao decidir assumir os cachos naturais. Quando completar 40 anos, em setembro, essa será mais uma bem-vinda mudança na aparência que, no fim, a ajudou a entender quem ela é e quem quer ser daqui para a frente.
– Tudo isso tem a ver com a maturidade, a aceitação. Entender quem você é perante a sociedade, e que isso não a pelos seus fios brancos ou pela sua forma física – pondera. – Tem a ver com a própria libertação.
Faxina no armário – e na vida
Pelo menos 60 pares de sapatos. Trinta calças jeans. Sessenta camisetas. Dezoito jaquetas de couro. E mais de 30 bolsas. Foi em um balanço do próprio armário que a empresária e professora universitária Cris Vieira, 50 anos, contabilizou a quantidade de peças que acumulava nos cabides – e que, há tempos, não dava conta de usar.
– Fiquei horrorizada ao ver tudo o que eu tinha – conta.
Como tanta gente neste período de confinamento, o tempo extra em casa fez com que Cris prestasse mais atenção ao próprio lar. Organizar o roupeiro foi uma das primeiras tarefas que executou nas horas livres – mas a função, no fim das contas, ou longe de uma arrumação trivial. Para ela, foi um momento de redescoberta: das peças que guardava com carinho (e pouco usava), mas também de que não precisava de tudo aquilo para o seu dia a dia. O momento de faxina foi, no fim das contas, o pontapé que Cris precisava para começar a repensar a forma como estava consumindo:
– Com esse pensamento do mundo inteiro de olhar mais para si, para dentro, comecei a organizar a casa. O tempo em casa acelerou esse processo.

Seis malas cheias de roupas foram doadas para bazares de centros espíritas, além de “três ou quatro sapateiras cheias”, contabiliza. Agora, para uma nova peça entrar no armário, as regras serão outras: Cris ou a se interessar por moda consciente e faz questão de saber a procedência do que veste.
– Para comprar um casaco, hoje me interessa saber de onde ele vem. Olhar essa marca, saber que tipo de material ela usa – explica ela.
Para comprar um casaco, hoje me interessa saber de onde ele vem. Olhar essa marca, saber que tipo de material ela usa.
CRIS VIEIRA
Para além das roupas, Cris, que já havia aderido ao vegetarianismo, também promoveu novas mudanças na sua alimentação. Ao abrir a despensa, percebeu que amontoavam-se pacotes de massa e arroz – mas a fruteira não tinha nem uma laranja. Com a ajuda de uma nutricionista, inseriu novos alimentos no cardápio e ou a preparar as próprias refeições com mais frequência. Descobriu-se uma “chef da quarentena”: das receitas que testou, a que mais faz sucesso é o pão integral. Mais um (novo) hábito que pretende levar para a vida pós-confinamento:
– O comportamento está muito vinculado à tua forma de ver a vida. Agora, estou mais perto do que eu quero ser do que estava antes.
Virada radical
Uma semana antes do distanciamento social começar na Capital, o ex-marido de Renata Vieira Martins saiu de casa. Era a última etapa da separação que havia iniciado em dezembro, quando a jornalista de 41 anos ouviu do companheiro que o ciclo deles havia chegado ao fim. Antes de tomar rumos diferentes e se separar fisicamente, eles decidiram buscar auxílio profissional para compartilhar a decisão com a filha, Bruna, quatro anos. Ao mesmo tempo, Renata tentava entender como seria sua vida dali para frente: depois de 17 anos, aria a morar somente com a pequena e encarar, ao menos em alguns dias da semana, a rotina de uma mãe solo. Com a pandemia, somou-se a essa equação o trabalho em modo home office. E, ainda, uma mudança de endereço.
– Comecei a juntar meus cacos, por mais que estivesse sofrendo. Pensei até em voltar para o Interior, onde morava. Estava sozinha com uma criança, tendo de trabalhar oito horas por dia. Então, fomos pensando em soluções para nos adaptar – recorda.

Como tantas mães, foi aprendendo, dia após dia, como entreter uma criança por tantas horas enquanto precisava responder a e-mails e participar de reuniões. E também aderiu à guarda compartilhada com o ex: Bruna, agora, a quatro dias com Renata e outros três com o pai.
Não consigo ser tudo ao mesmo tempo. Hoje, aceito minhas limitações e vulnerabilidades.
RENATA VIEIRA MARTINS
Por outro lado, o confinamento e a separação fizeram com que mãe e filha desenvolvessem uma relação ainda mais próxima. Nos dias que estão juntas, a jornalista desliga o computador às 18h30min e, depois da janta, às 20h30min, as duas vão para a cama. É o momento preferido do dia de Renata: a hora em que elas conversam e oram juntas. Ficou louça na pia? A sala está repleta de brinquedos? Azar, pensa ela.
Entre mãe e profissional, a coordenadora de conteúdo de uma agência de endomarketing agora também (re)descobre seu lado solteira – e mulher:
– Busco um equilíbrio para me reconhecer. Estou me vendo sozinha com três papéis: o de mãe, o de profissional e o de mulher. Isso me fez olhar para a vida de uma forma menos crítica comigo mesma. Não consigo ser tudo ao mesmo tempo, fazer ioga e meditação às 7h da manhã. Hoje, aceito minhas limitações e vulnerabilidades.