
Viralizou, nas redes sociais, o vídeo de um cachorro que finaliza um conflito entre outros cães apenas com sua presença. Nas publicações, muitos internautas chamaram o cão de "dominante" e "alfa". Para especialistas, no entanto, os termos não definem a totalidade do comportamento canino.
Para entender melhor a atitude dos cachorros, Zero Hora conversou com dois veterinários especializados em convivência entre cães.
Vídeos viralizaram
Nos vídeos que circularam pelas redes sociais, um cachorro de pelagem clara, sem raça definida — do tipo popularmente chamado de "fiapo de manga", devido à pelagem arrepiada — aparece no centro de uma possível briga entre outros cães.
Em uma das gravações, ele se aproxima calmamente de dois cães que demonstram sinais de tensão. Sem latir, rosnar ou avançar, o animal entra em cena com postura firme, cauda erguida e olhar direto.
Ao notar sua chegada, um dos animais recua e se deita de barriga para cima. O animal, então, sobe em cima do outro cão por alguns segundos.
Em outro vídeo, o mesmo cão faz a mesma ação: sobe com uma das patas sobre outro que já está deitado, maior que ele, e que permanece imóvel. Os demais observam a cena, mas não se aproximam.
Confira os vídeos:
Liderança ou simples intimidação?
Para o psiquiatra veterinário Felipe Gonçalves, o comportamento do cão claro pode, sim, ser visto como uma forma de liderança no grupo onde vive. Ele destaca que o animal não usa violência, mas sim comunicação corporal para intervir nos conflitos.
— No primeiro vídeo, ele chega entre os cães que estão brigando e se posiciona entre eles, tentando cortar a briga. Um dos cães, para sinalizar que não quer continuar, deita de barriga para cima, numa postura de submissão — afirma.
A interpretação é parecida no segundo vídeo. O mesmo cão se aproxima novamente de outro conflito, e o resultado é o mesmo: a briga para. Para Gonçalves, trata-se de um comportamento comum em grupos caninos.
— Ao invés de "dominante", como as pessoas estão falando, podemos falar de liderança, com certeza. É um líder, nos dois vídeos. Ele chega, afasta o cão da briga. Como o cão entende que não tem poder para enfrentá-lo, ele deita. Tudo está em uma comunicação por gestos corporais.
O que torna um cão respeitado por outros? Segundo Caroline Pezzi, médica veterinária especialista em comportamento animal, a resposta pode estar no ado do "fiapo de manga". Para ela, o respeito vem do medo — e esse medo pode ter sido construído com base em muitas brigas anteriores.
— Quando ele se aproxima, os outros cães demonstram muito medo. Alguns se encolhem visivelmente, inclusive um que é maior do que ele. Isso indica que já deve ter rolado brigas muito feias antes de se chegar a esse ponto — avalia.
Comportamento aprendido ou traço de personalidade?
Segundo os especialistas, é importante entender que esse tipo de atitude não é um traço fixo de personalidade. Ou seja, não existe um "cão dominante" por natureza. O que há são comportamentos que se expressam em determinados contextos — e podem mudar com o tempo.
— Esse traço aparece em determinadas situações. Em momentos de tensão, ele assume esse papel de liderança, mas em outras ocasiões pode estar brincando de barriga para cima como qualquer outro — explica Gonçalves.
Caroline vai além e propõe uma leitura crítica do próprio conceito de dominância que, segundo ambos, já está em desuso. Para ela, a teoria tem base frágil e foi abandonada até mesmo por quem a criou.
— A dominância é um termo muito questionado. Os cães não formam matilhas como os lobos. Na verdade, o autor da teoria original se retratou. Ele mesmo reconheceu que os estudos foram feitos em ambientes artificiais, colocando lobos estranhos juntos, o que não reflete o comportamento natural — afirma.
Comunicação corporal como ferramenta de convivência
O que os vídeos revelam, segundo os dois especialistas, é a eficácia da linguagem corporal entre cães. Postura ereta, peito inflado, orelhas levantadas e cauda rígida são sinais claros de intimidação. Mas isso não significa necessariamente agressividade.
— Eles usam essa comunicação para evitar o confronto físico. É custoso para eles se morderem e se machucarem, então preferem resolver na base da ameaça. O cão já usou muita violência antes e agora não precisa mais: basta a presença dele — explica Caroline.
Gonçalves destaca que esse padrão de interação é comum em grupos, seja em abrigos ou em casas com mais de um cachorro.
Quando se preocupar?
Se por um lado a liderança pode ser saudável, por outro, conflitos constantes dentro de casa merecem atenção. O tutor deve observar os sinais de tensão e saber quando procurar ajuda profissional.
— Se está gerando problema, se há machucados, brigas frequentes ou um padrão de agressividade, precisa intervir. Separar os cães, buscar orientação com um especialista em comportamento. Se isso se agravar, pode até levar à morte de um deles — alerta Gonçalves.
O veterinário lembra que a adolescência canina, entre dois e três anos, é uma fase crítica. É nesse período que muitos cães tentam "ascender" na estrutura social do grupo — o que pode gerar algumas disputas.
Caroline também chama atenção para o ambiente em que os vídeos foram gravados. Na avaliação dela, o espaço superlotado e com cães desconhecidos contribui para a tensão entre os animais.
— Eles estão ali porque foram colocados juntos. É um canil, um abrigo, não um grupo formado por afinidade. O manejo inadequado favorece brigas. A liderança do cão branco pode ter se consolidado nesse contexto — ressalta.
Nem alfa, nem vilão
A conclusão dos especialistas é semelhante: o comportamento do fiapo de manga é resultado de vivências anteriores e da forma como os cães se organizam socialmente.
— É apenas um cão que aprendeu a resolver os conflitos do grupo de determinada forma e que, como deu certo. Por ser um cachorro grande ou ter mais desenvoltura, ele foi reforçado a usar essa agressividade e hoje ele não precisa mais usar, só se impõe — finaliza Caroline.
Tutor deve entender a comunicação
Para Gonçalves, o papel do tutor é fundamental: observar, estudar e, se necessário, intervir de forma responsável.
— Os cães se comunicam com a gente o tempo todo. Cabe ao tutor aprender a ler o comportamento dos cães. Uma liderança dentro do grupo é normal, que acontece dentro de qualquer grupo. O tutor tem que prestar atenção se vai gerar confronto e aí, sim, precisa intervir — conclui.
Para quem vive com mais de um cachorro em casa, a recomendação é observar de perto a dinâmica entre eles. Entre as medidas recomendadas estão:
- Separar os cães quando houver conflitos frequentes;
- Procurar um profissional especializado, como um veterinário comportamental;
- Evitar métodos punitivos ou agressivos, que só pioram os comportamentos;
- Estudar e compreender a linguagem corporal dos cães.
*Produção: Murilo Rodrigues