
Os mistérios do mundo nos atravessam. Recebi uma carta manuscrita de um condenado por corrupção que está cumprindo pena em regime fechado.
Não foi a primeira vez. Já recebi carta de um assassino confesso e de um traficante de drogas, entre outros criminosos. Eles não fazem pedidos nem justificam seus atos. Não há nenhuma manipulação ou apelo. Apenas agradecem. Em sua incalculável solidão, revelam-se gratos pela possibilidade que tiveram de abrir uma janela através de um poema ou de uma crônica que chegou até eles. Uma carta é um gesto de aproximação. Um "olá, eu existo".
A carta desse homem abriu algumas trancas em mim. Desde criança, fui condicionada a dividir o mundo entre bons e maus, como se não houvesse nenhuma complexidade por trás das nossas atitudes, nenhuma responsabilidade social pela violência das ruas. É bandido contra mocinho e fim de assunto. Joga-se o infrator num buraco degradante e fica a pessoa lá apodrecendo, longe dos nossos quintais. Recuperá-los? Muito caro. Ainda há quem acredite que amontoar gente numa cela é a solução. Até que chega uma carta e é como se dois mundos antagônicos se enxergassem pela primeira vez.
Esse homem errou, foi julgado e merece a punição que teve. Mas continua sendo um ser humano. Um ser humano preso acenando para um ser humano solto. São evidentes as nossas diferenças, mas e as nossas semelhanças?
Não importa quantos livros um autor vendeu: todo ato de criação é uma relação a dois. Um que fala, outro que escuta. Duas pontas unidas por um fio elétrico: a emoção. A carta é a representante mais singela e ao mesmo tempo mais potente dessa troca mútua e particular. Por ser tão íntima, comove, ainda mais quando é um estranho que nos escreve, e não qualquer estranho — um estranho a quem somos incentivados a desprezar! — e que de repente está ali, em nossas mãos, nos revelando seus sentimentos. Ele deixa de ser um marginal no sentido infame do termo e a a ser visto como alguém que apenas tenta reduzir o seu isolamento. E acaba reduzindo o nosso também. Há pessoas mais livres que outras, mas a solidão é comum a todos. Uma carta de um criminoso, quem diria, pode nos libertar da nossa arrogância e nos abrir para um estado de subjetividade transformador. Ele me fez trocar o ódio pela compaixão.
Eram frases simples. Ele só queria dizer obrigado. Agradeceu por eu ter arejado a cela abafada em que vive, por ter feito ele voltar a se sentir parte de um todo — é a força da palavra arrebentando cadeados.
Este homem, hoje considerado inútil para a sociedade, abriu um pouco a minha cela também, me liberando para sentir o que foi proibido pelos conceitos rígidos de certo e errado, de "nós e eles": me sensibilizou com seu plano de fuga — a gente sabe que o mundo não quer ver emoções escapando. Uma carta é uma fresta. Uma escavação. Um túnel. Se eu respondi? Estou respondendo.