
Um Papa novinho em folha e a colunista vem provocar. Nada disso, venho inspirar por outras vias. Até Deus Pai sabe que existem maneiras diversas de se viver, sem prejuízo aos valores cristãos. O demônio que convido para o café é o mesmo demônio que Clarice Lispector dizia faltar em Berna, cidade suíça onde ela testemunhou a neutralidade extrema e o tédio idem. Ou seja, o demônio que nos salva da apatia.
Recentemente, os brasileiros foram inquietados por duas manifestações gigantes. Tudo começou com Lady Gaga inflamando Copacabana com uma superprodução de alta performance, mas que era, antes de tudo, um espetáculo consagrado à inclusão. Para além de sua plateia cativa LGBT+, ela cantou também para os deprimidos, solitários, medicados, enfim, Gaga é atenta a transtornos e fez de sua carreira um grande “vem cá, eu te entendo”.
Mesmo assim, os implicantes implicaram, pois, para alguns, só tem representatividade quem segue a cartilha dos beatos. Mas um show como aquele, de comunhão absoluta, não seria uma espécie de missa também? Os little monsters se unem e protegem uns aos outros quando sua liberdade, desejo e direito de existir parecem voluptuosos demais para a sociedade.
Cama feita para falar de outra manifestação arrebatadora, que não aconteceu em um palco, e sim nas telas dos cinemas: a estreia do filme Homem com H, que retrata a vida de Ney Matogrosso. Não é apenas o registro da carreira de um artista, mas uma declaração pública da magnitude e transcendência de ser quem se é, a despeito das truculências sociais. Uma vida para ser vivida: é o que cada um tem. Uma só, aqui nesse plano. O demônio tem paciência zero com a eternidade, ele atua no agora. “E é só na sequência dos agoras que você existe” (Lispector, outra vez).
O filme, escrito e dirigido por Esmir Filho, é um convite a nos comprometer com a essência que nos move, e eu poderia ter escrito fé em vez de essência e o resultado daria no mesmo: paixão. Ney tem vivido apaixonadamente o tempo que lhe cabe aqui na Terra, e o faz à sua maneira. Ao sair do cinema, a pergunta que nos vem é se o nosso punhado de tempo por aqui está igualmente sendo usufruído com liberdade e verdade. Ou deixaremos para ser nós mesmos em outra vida depois desta?
Dias atrás, o Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf) divulgou que 29% dos brasileiros entre 15 e 64 anos não entendem o que leem, então confio este texto aos 71% que compreendem que convidar o demônio para um café é uma brincadeira com o título de um livro campeão de vendas, além de uma oportunidade de homenagear artistas que abrem as portas de outros céus para que todos sejam felizes a sua maneira. Com a bênção, imagino, do papa Leão XIV.