Estamos, pelo menos neste momento, em um local muito privilegiado. Nossos epidemiologistas que, neste cenário de pandemia de coronavírus, ocupam o lugar dos oráculos, dando voz aos deuses que revelam nossos destinos, informam com veemência que “achatamos a curva”! Não houve o festim comemorativo correspondente, ainda que essa tenha sido a notícia mais otimista dos últimos três meses. O momento é triste, muito triste e, ainda que privilegiados, estamos conscientes do que se a no resto do mundo e da devastação a que assistimos, com cobertura jornalística plena de cenas inimagináveis e mapas de morbidade e letalidade atualizados em tempo quase real. Alguns locais atingidos são recobertos de romantizações e idealizações – como Nova York, Paris, Milão, Madri. E, dizem, o assolamento em lugares mais vulneráveis ainda nem começou. É triste e terrivelmente assustador.
A pandemia nos pegou de surpresa e absolutamente despreparados para a dimensão da catástrofe. Um súbito cataclisma como esse destapa todas nossas fragilidades. Alardeia a inadequação da distribuição das riquezas no mundo e de nossa estrutura econômica, faz bravata da insuficiência e da inadequação dos sistemas de saúde, fanfarroneia a respeito do grave desgoverno instalado em diferentes partes do planeta, zomba de nossa escolha de prioridades e nos põe em contato com vulnerabilidades individuais que a vida cotidiana nos permite ocultar.
Nosso psiquismo existe para dar significado a nossas experiências emocionais, para permitir que construamos um sentido para o que nos acontece e, ordenados em sistemas narrativos individuais, criarmos nossa própria história, nossa visão de mundo, nossa noção de sabermos sobre nós mesmos e nos prepararmos para enfrentar as novas experiências. Algo da dimensão de uma guerra ou de uma destruição coletiva sem um conhecimento de como combatê-lo, com um caráter inédito, como o que estamos vivendo, leva tempo para atribuirmos um sentido. Esse é o principal responsável pelo sentimento de “estranheza” que temos nessa situação. Não temos como dar um sentido ao que nos está ocorrendo.
Somemos alguns outros ingredientes. Um contato com a morte, explícito, impiedoso, que se acerca de nós mesmos, nossos familiares, amigos, conhecidos, nossos semelhantes, ainda que desconhecidos. Uma morte por asfixia e solitária, pelo isolamento necessário daqueles contaminados. Uma intensa incerteza de como será o mundo ado o dilúvio. Como serão nossas vidas, nossa economia, nossos trajetos pessoais, o futuro de nossos filhos? O que mudará em nossa moral, em nossos costumes, na maneira como valorizamos o que vivemos? Como será nossa relação com os outros, vamos ser mais solidários, mais egoístas, mais cautelosos, mais assustados? Uma parte de nós terá memórias aterrorizantes? O que restará da experiência de isolamento? Quantos adoeceremos psiquicamente e psiquiatricamente se esse isolamento tiver de ser mais prolongado ou repetir-se por muitas vezes em um prazo não determinado?
Alguns dos leitores devem estar pensando: “Chega!”. Porque não estamos preparados para tantas pressões desconhecidas, tantas incertezas quanto ao futuro e tanto contato com a morte, o luto e a tristeza. Vamos nos acomodando, até porque não há outra opção. Todos os cientistas sérios e confiáveis do mundo dizem que, neste momento, sem vacinas e sem medicações conhecidamente eficazes, o único remédio é o isolamento social, com liberações setoriais, regionais, por categorias de risco, cauteloso, progressivo e com a clara noção de que poderá ser necessária a restrição de contato mais severo novamente, como já está ocorrendo nos primeiros locais nos quais a covid-19 se instalou.
É duro? Sim. Envolve um planejamento muito engenhoso entre a sobrevivência de indivíduos e da economia? Sim. Temos de estar preparados para tanta dureza? Sim. E se não estamos? Alguns adoecem. Outros permitem que o “chega!” domine, porque não toleram tanta pressão e angústia. O que fazem então? Utilizam recursos psíquicos para não sentir o que sentem. Como se faz isso? A primeira manobra é negar. A doença não existe, é um exagero da imprensa, um pânico coletivo ou “uma gripezinha”.
Para triunfar sobre a angústia, saem as ruas, desvalorizam a ciência, atacam o que se sabe, colocando em risco suas vidas e as dos demais. A isso, psicanaliticamente falando, chamamos de “triunfo maníaco”. A etapa seguinte é ficar mais violento, com todas as formas de violência possível e imagináveis, desde a violência doméstica, individual, coletiva e todas as formas de ataque ao humano e a nossos valores construídos a duras penas em nosso processo civilizatório.
Comecei dizendo que era muito triste. Com essas “saídas”, fica trágico. Por favor, escutem os oráculos: só saiam de casa orientados por eles!