Farmacêutica no Hospital Nossa Senhora da Conceição, pós-doutora em Epidemiologia

Ao retornarem da Segunda Guerra Mundial, soldados enfrentaram dificuldade de reinserção em seus núcleos familiares. Suas esposas haviam realizado um processo de elaboração durante o tempo em que eles estiveram ausentes como se realmente tivessem morrido. Era como se elas tivessem aceitado a perda de seus maridos antes desta de fato acontecer.

Esse fenômeno foi chamado de “luto antecipatório” e é proposto que tenha ocorrido em função da separação, da ameaça ou do perigo real do falecimento, e não da morte em si.

O luto antecipatório seria consequência de um pressentimento de finitude. Finitude da própria existência e da dos que amamos, dos nossos semelhantes e também do mundo como o conhecemos. Luto antecipatório seria a mente indo até o futuro e imaginando o pior.

Com a pandemia de covid-19, podemos estar vivendo um momento de luto antecipatório e também coletivo. O 11 de Setembro, tragédia que matou quase 3 mil pessoas e trouxe mudanças radicais no tráfego aéreo mundial, é um exemplo de luto coletivo na história. Só nos EUA, o número de mortes por coronavírus já superou em quase 10 vezes o dos atentados de 2001 – e cresce a cada dia. Apenas em Nova York, epicentro da doença no país (e dos ataques terroristas de 19 anos atrás), o número de mortes por dia está perto de mil, ou seja, um terço de todo 11 de Setembro a cada dia.

Qual será a magnitude do nosso luto ao fim da pandemia? Que mudanças o vírus trará para o nosso cotidiano? De que modo ele mudará radicalmente o mundo em que vivemos? Quais valores morais restarão? Ainda não sabemos, e isso faz com que nossas mentes viajem até o futuro e projetem os piores cenários, para que, quando e se eles acontecerem, já estejamos preparados.

David Keller, no artigo para a Harvard Business Review intitulado This Disconfort You’re Feeling Is Grief (“esse incômodo que você está sentindo é luto”, em tradução literal), indica que é possível pensar que processamos o luto antecipatório e coletivo com as mesmas etapas clássicas do luto. Além disso, também é possível identificar em nós mesmos falas e pensamentos característicos de cada um desses estágios.

A aceitação dói, mas a negação mata. Em tempos de pandemia, encarar a realidade como ela se apresenta é um remédio amargo, mas necessário.

Existe negação: é só uma gripezinha; outras doenças matam muito mais, amos pela H1N1 sem tantas mortes e desta vez será igual; esse vírus não nos afeta; ou, ainda, o vírus não existe. Existe raiva: agora sou obrigado a ficar em casa, perdi minha liberdade, não consigo ficar sem jantar fora e ir à academia. Existe barganha: se entrarmos em isolamento social por duas semanas, ou até o final de abril, tudo ficará melhor e então poderemos retomar nossas vidas de onde paramos, como era antes; só os idosos e os que já estão doentes que irão morrer (neste caso, barganhando a própria vida – e a do outro). Existe depressão e medo: quando isso vai acabar? Vou morrer? Alguém que eu conheço e amo, ficará doente? Não vou ar viver isso. E, finalmente, existe aceitação: está acontecendo, preciso saber como me proteger e como não infectar outras pessoas; preciso ajudar a conter essa pandemia.

Seria natural, durante o processo de luto, transitar entre estes estágios. Há dias melhores e há dias piores. Mas talvez na aceitação resida o espaço em que é possível encarar a realidade como ela é e planejar ações que diminuam os impactos de saúde, sociais e econômicos decorrentes da pandemia, a curto, médio e longo prazos. Pois a aceitação dói, mas a negação mata.

Em tempos de pandemia, encarar a realidade como ela se apresenta é um remédio amargo, mas necessário.

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