Em que pesem as mirabolantes teorias da conspiração ligadas ao Laboratório de Virologia da cidade chinesa de Wuhan, tudo leva a crer que origem do vírus causador da presente pandemia deva ser procurada em um local bem mais prosaico. A saber, em um dos muitos “mercados úmidos” daquela cidade, onde, em condições propícias, o patógeno teria efetuado o salto evolutivo que caracteriza a emergência de doenças compartilhadas entre animais e humanos (zoonoses).
Repetindo um conhecido enredo, acredita-se que algum animal silvestre ou doméstico, entre os vários oferecidos à venda no mercado de Wuhan, teria servido de ponte para o agente infeccioso ar de morcegos a humanos, cabendo ao pangolim (bicho parecido com o tatu sul-americano) o protagonismo da história, na hipótese mais conhecida.
Em janeiro, a mão forte do Estado chinês foi rápida em decretar o fechamento do local, assim como a proibição do comércio de animais selvagens em todo o país. Desde então, diversas vozes no debate internacional têm defendido a abolição completa dos mercados úmidos, de modo a estancar o que se entende ser a casa de máquinas de múltiplas pandemias.
Todavia, se essas exortações manifestam preocupações genuínas com a saúde e o bem-estar de humanos e animais, por outro lado também carregam o risco de reproduzir estereótipos e preconceitos contra os modos de vida asiáticos, especialmente em relação aos chineses.
Com efeito, há tempos que os mercados úmidos – assim chamados em oposição aos mercados “secos”, de produtos não vivos e manufaturados – habitam certo imaginário exotizante sobre o Leste Asiático como lugar das inversões mais radicais dos tabus alimentares ocidentais, seja pelo consumo do excessivamente selvagem e longínquo (morcegos), seja pelo demasiadamente doméstico e próximo (cães). No entanto, o foco exclusivo sobre essas excentricidades ignora que a dieta proteica média dessas populações é mais semelhante à nossa do que se imagina, sendo o uso alimentar e medicinal de animais selvagens, no mais das vezes, uma questão de nicho.
Não há dúvidas de que o cotidiano dos mercados úmidos envolva encontros humano-animais propícios para o surgimento de zoonoses. Contudo, o mesmo pode ser dito de outros lugares do mundo globalizado, em que a supressão de habitats naturais e a industrialização da produção animal engendram condições ainda mais favoráveis para o aparecimento de doenças emergentes. Basta recordar que o surto de H1N1 de 2009 partiu de uma granja industrial de porcos no México, e que as crises da Vaca Louca, nos anos 1980 e 1990, ocorreram nas altamente tecnificadas criações bovinas europeias.
Em artigo recentemente publicado no jornal inglês The Guardian, Jonathan Foer e Aaron Gross pam o dedo na ferida da pandemia que enfrentamos: ao liberar patógenos mortais em nosso frágil meio ambiente, o modo como criamos e comemos animais ameaça nossa sobrevivência. Não se trata do terrível aquecimento global ou da extinção em massa de espécies: de origem antrópica fartamente documentada, esses problemas são já matéria de consenso na comunidade científica internacional. Por serem fenômenos de efeito lento e progressivo, nos acostumamos a minimizar sua importância, para alegria de negacionistas climáticos, governos extremistas, desmatadores, mineradores e grandes corporações petroleiras. O drama do coronavírus é o completo oposto desse cenário, e talvez por isso nos auxilie a tomar a consciência necessária para que desenvolvamos o que o sociólogo Ulrich Beck chamou de “catastrofismo emancipatório”.
Seus efeitos são dramáticos e imediatos, convocando um sentido de urgência e reflexão profunda no modo como nos relacionamos com o meio ambiente e os animais.
Nesse sentido, os combalidos animais selvagens vendidos nos mercados úmidos são apenas o sintoma mais visível de um problema muito maior. Se não desarmarmos o coquetel explosivo das relações predatórias que mantemos com os demais seres que habitam a Terra, só nos resta esperar a próxima pandemia – quiçá ainda mais mortal.