Multidão invadiu e depredou as sedes dos três poderes, em Brasília, após a vitória de Lula na eleição presidencial de 2022.

As instituições brasileiras falaram alto no 8 de janeiro pela democracia.

CÉLI PINTO

Doutora em Ciência Política e professora emérita da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Quatro décadas após o fim do regime, o Brasil novamente está diante da discussão sobre o papel e a ação dos militares: punir ou anistiar os denunciados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) por tramas golpistas que pretendiam impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva em janeiro de 2023.

Professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Leonardo Avritzer afirma que o retorno ostensivo dos militares à vida política nacional, sobretudo a partir do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, tem relação com a inimputabilidade da ditadura militar, que perdurou de 1964 a 1985.

Mateus Bruxel / Agencia RBS
Petista se tornou a segunda presidente a ter o mandato abreviado por um tribunal de senadores.

— O primeiro momento na democracia brasileira em que militares poderão ser condenados vai acontecer neste ano (2025). É fundamental a punição para a estabilidade democrática — avalia Avritzer.

Não tivemos justiça de transição e punição dos excessos cometidos em torturas, prisões e desaparecimentos.

LEONARDO AVRITZER

Professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais

Villa pondera que o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) será contra “um pequeno número de oficiais”, e não contra as Forças Armadas.

— Não foi estabelecido, no processo de redemocratização, o papel das Forças Armadas na prática da defesa nacional. Isso é problema do poder civil. Até hoje não sabemos o que queremos por falta de projeto. Precisamos de Forças Armadas enxutas, modernas, que gastem mais com equipamentos do que com pessoal — pondera Villa.

O fim do regime militar

Sob o general Ernesto Geisel, penúltimo presidente da ditadura militar, já havia anseio pela prometida abertura "lenta, gradual e segura" quando veio uma invertida: o pacote de abril de 1977 aplicou mais medidas autoritárias. O fechamento temporário do Congresso, o aumento do mandato presidencial de cinco para seis anos e a manutenção da eleição indireta para governador. Também foi criado o senador biônico, uma indicação do presidente da República. O objetivo era garantir a maioria para o governo no Legislativo e no processo político, contendo o avanço da oposição reunida no MDB.

— O pacote de abril de 77 gerou reação enorme, um espírito novo de mudanças radicais que precisavam acontecer, sob pena de as próximas gerações ficarem submetidas à ditadura militar. Foi um momento de inflexão. Aglutinou todas as forças que desejavam bases mínimas de democracia — recorda o ex-senador José Fogaça (MDB), que viria a ter papel relevante no encerramento da ditadura como coordenador da campanha das Diretas Já no Rio Grande do Sul e relator-adjunto da Constituição de 88.

A efervescência da oposição levaria o governo militar a ceder. Já sob Figueiredo, vieram a anistia “ampla, geral e irrestrita”, em 1979, o fim do bipartidarismo, o direito à organização política e as eleições diretas para governador em 1982. A oposição democrática venceu em 10 Estados, contra 12 do governista PDS, alcançando importantes êxitos em São Paulo, com Franco Montoro (PMDB), em Minas Gerais, com Tancredo Neves (PMDB), e no Rio de Janeiro, com Leonel Brizola (PDT).

Fernando Gomes / Agencia RBS
Na imagem, manifestação em Capão da Canoa, Litoral Norte, em fevereiro de 1984.

A campanha das Diretas Já, movimento nacional pela escolha popular do presidente da República, foi um marco histórico entre 1983 e 1984. Fogaça relata que o povo decidiu sair às ruas aos milhares, deixando para trás o medo da repressão. No Rio Grande do Sul, houve atos em Cachoeira do Sul e Capão da Canoa. Em Porto Alegre, uma eata que se encerrou na Esquina Democrática e um comício em frente ao Paço Municipal, reuniu cerca de 200 mil pessoas. A emenda pelas eleições diretas, apresentada pelo deputado federal Dante de Oliveira (PMDB-MT), obteve ampla maioria de votos na Câmara, mas não o suficiente para alcançar os dois terços necessários. Apesar do entusiasmo da campanha, ficou pelo caminho o sonho de ir às urnas em 1985, quando acabava o mandato do general Figueiredo.

— A campanha das Diretas foi fundamental para consolidar a ideia de retorno dos civis ao poder — destaca Avritzer.

A sucessão de Figueiredo, sem eleições diretas, ficou novamente para o colégio eleitoral. O PDS, sucessor da Arena, sofria com o desgaste dos anos de autoritarismo e contabilizava defecções. Caciques como Sarney, ex-PDS, migraram para o outro lado, seja o PMDB ou a Frente Liberal, uma dissidência do governo. Também havia um racha na coesão da ditadura militar, que, naquela disputa, foi representada por um civil: Paulo Maluf. Pela oposição, Tancredo Neves (PMDB) e Sarney de vice. Tancredo venceu por larga vantagem: 480 votos contra 180 de Maluf.

Célio Azevedo / Agência Senado / Divulgação
Há quarenta anos, multidão se fez presente em Brasília para acompanhar votação.

— O regime estava isolado e o desgaste era muito grande. A ditadura se legitimou em períodos com êxitos econômicos. Não era o caso do início dos anos 80. Houve a crise da dívida externa, a disparada da inflação e a queda do poder aquisitivo. O contexto fez o regime ficar encurralado política e economicamente — comenta Villa.

Diante do quadro irreversível, o governo militar “opta por uma saída organizada e negociada do poder”, destaca Avritzer. Para ele, a ditadura manteve um grau de “tutelagem” sobre o governo civil que se abria, “inclusive com ameaças a Sarney”. Os anos 80 foram marcados por atos terroristas de militares da linha radical que não aceitavam a transição. Nos bastidores, entre 1985 e 1989, ocorreram murmúrios sobre um possível novo golpe, o que foi registrado em documentos da CIA, agência de inteligência dos Estados Unidos.

— Se analisarmos o período da Constituinte, vamos perceber que os militares conseguiram colocar na Constituição tudo o que quiseram, incluindo o artigo 142 — afirma Avritzer, mencionando a condição das Forças Armadas de garantidoras da lei e da ordem, sob autoridade do Presidente da República.

Tancredo era conciliador. Não era um “incendiário”, destaca Villa. Aos olhos dos militares, isso o tornava “palatável” à sucessão.  Contudo, o histórico político mineiro, que havia sido primeiro-ministro de João Goulart antes do golpe de 1964, precisou ser internado às pressas na véspera da posse. Surgiu a tese de que Sarney não poderia assumir se Tancredo, o presidente eleito, não estivesse empossado. Aconteceram horas de negociações nos bastidores envolvendo militares e, pelo lado da oposição, o peemedebista Ulysses Guimarães, o Doutor Diretas. Episódios como esse levam especialistas a reforçar a teoria de que a transição foi tutelada pelos militares.

Apesar da pressão e da recusa de Figueiredo em entregar a faixa presidencial, Sarney assumiu em 15 de março de 1985. Vieram as eleições de 1986, com a nomeação dos constituintes, a promulgação da Carta Magna e a eleição de 1989 pelo voto direto.

Agência Senado / Divulgação
Sarney chega ao Congresso para tomar posse como presidente.

— Para a minha geração, toda a mocidade jovem e adulta, foi uma mudança muito grande e importante. Eu só pude votar para presidente da República com 42 anos. Já tinha dois filhos grandes em casa. Foi uma mudança construída ao longo do tempo — rememora Fogaça.

Para Avritzer, março de 1985 é o “marco inaugural” do fim da ditadura.

— A democratização é um conjunto. O elemento central é a Constituição de 88, que amplia direitos políticos e sociais — afirma o cientista político.

Na era civil-democrática, são apontadas como algumas das principais conquistas do Brasil o Plano Real, a estabilização da economia, a redução da pobreza e das desigualdades, a independência das instituições e a consolidação de direitos da cidadania.

Questionamentos ao marco

Uma linha mais recente da historiografia questiona o 15 de março de 1985 como o fim da ditadura militar e o início da era democrática. Os argumentos vão desde a posse de Sarney, um egresso do PDS, até o fato de ele ter governado parte do mandato sob o império da Constituição de 1967, instituída em articulação civil-militar. A tutela que as Forças Armadas teriam exercido na transição democrática reforça a análise.

Que começou um governo civil é inconteste, mas que iniciou uma democracia é onde reside a primeira crítica. Sarney jogava com as regras da ditadura. Não havia novidade. A posse de Sarney é negociada por Ulysses com Leônidas (Pires Gonçalves), que era ministro do Exército. A transição não é uma data, mas é um processo que acontece aos poucos — avalia Caroline Silveira Bauer, professora do Departamento de História da UFRGS.

Ela reitera que os militares tiveram força para incluir dispositivos do seu interesse na Constituição de 88: além do artigo 142, menciona o “lobby” para a manutenção da segurança pública militarizada. Recorda a sobrevida do Serviço Nacional de Informações (SNI) até 1990 e dos ministérios das Forças Armadas — do Exército, da Marinha e da Aeronáutica —, que, somente em 1999, no segundo governo de Fernando Henrique, foram sucedidos e agregados no Ministério da Defesa.

— Se consultarmos os arquivos do SNI, observamos que houve vigilância sobre a Constituinte, a reorganização dos movimentos sociais e os candidatos à Presidência de 1989 — destaca Caroline.

Ela vai além ao contestar a visão de que a ditadura militar foi derrotada no Brasil.

— Teve crises e elementos importantes de descrédito na opinião pública, mas a memória social da ditadura é positiva, independentemente da economia e dos crimes — enfatiza Caroline.

O cientista político Leonardo Avritzer recorda a teoria do “entulho autoritário”. A ditadura findou, mas permaneceram instituições e monitoramento do poder civil.

— A tutelagem, talvez, esteja chegando ao final agora, com os processos do 8 de janeiro. Os militares entregaram o poder e saíram nos seus termos. A maneira como a Lei da Anistia não permitiu exceções para analisar casos de mortos e desaparecidos. Tudo isso é o entulho autoritário, que segue até hoje — destaca o professor.

As análises de ambos, no debate público, encontram resistência. Para o historiador Marco Antonio Villa, os problemas atuais da democracia não têm relação com a transição de 1985, mas com o impeachment de Dilma Rousseff, quando a sociedade teria entrado em um processo de “irritação” após episódios de corrupção e crise econômica.

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Fernando Collor assumiu em 1990 e extinguiu o SNI. Depois, ele sofreu impeachment em 1992. Houve pressão dos militares em 92? Não teve — diz Villa.

MARCO ANTONIO VILLA

HISTORIADOR

Ele destaca que Sarney já assumiu o governo “fragilizado”, com inflação de três dígitos em 1985, e diante de “muitas expectativas e cobranças”.

— A transição foi bem feita. Podemos dizer que o general Leônidas tinha ascendência grande, mas nada comparado à tutela dos militares no Chile — pondera o historiador.

O ex-senador Fogaça discorda do conceito de que a ditadura estendeu seus tentáculos para além de março de 1985.

— Ali se encerra o governo militar. Não havia mais repressão ou limitação política. As instituições que perduraram não tinham mais efeito prático. O mundo não é um estalar de dedos. Houve muito trabalho para a construção do novo edifício legal no país. Só a Constituinte foi um trabalho ininterrupto de dois anos — rebate Fogaça.

Sobre a discussão da Lei da Anistia, uma das mais acaloradas por proteger crimes de Estado, a professora Céli Pinto concorda que deveria ter ocorrido revisão nos governos civis. Contudo, ela considera “fácil” a crítica com o olhar dos dias atuais.

— Em 1979, tinha muita gente desaparecida, demitida do trabalho por causa de política, exilada. E tínhamos um governo militar aqui dentro. Quem era adulto lá atrás sabe a luta que foi para ter o mínimo de normalidade e tirar os militares do poder — reflete Céli.

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