
Criúva é um dos distritos de Caxias do Sul mais ricos em vestígios que traduzem a presença e o protagonismo indígenas na Serra. O projeto Caminhadas ao Patrimônio Arqueológico, idealizado pela condutora local de turismo Guadalupe Traslatti Pante, 42 anos, permite, por meio de visitas guiadas, que o público conheça a história da etnia kaingang e sua forma de subsistência e relação com a natureza.
A iniciativa tem produção cultural de Flor Nieto Lynch e foi contemplada pelo Financiarte 2024, possibilitando eios gratuitos. Desenvolvido em cerca de três meses, a produção cultural foi concluída em novembro. O financiamento de R$ 40 mil via Lei de Incentivo à Cultura municipal possibilita o transporte até Criúva, guiamento, divulgação e fotografia das excursões.
As visitas ocorrem neste 1° semestre, contudo, devido à alta procura, as inscrições ao público geral estão encerradas. Estudantes de cinco escolas de Criúva e Vila Seca também participaram. A reportagem do Pioneiro conheceu o projeto no sábado ado (17), com outras 35 pessoas, e conta um pouco do que viu.
O eio

Ao todo, o roteiro dura uma manhã, tem três quilômetros de caminhada e revela aos visitantes três sítios arqueológicos — situados em propriedades privadas, com as devidas autorizações para a excursão — e uma réplica de moradia kaingang. A ideia é conhecer, na prática, a organização social, a arquitetura e a relação harmoniosa do indígena com a natureza.
As pesquisas locais sobre o tema iniciaram, conforme Guadalupe, na segunda metade dos anos 1960, com 44 sítios arqueológicos mapeados pelos professores Pedro Ignácio Schmitz e Fernando La Salvia. Entre 1999 e 2006, o arqueólogo Rafael Corteletti revisitou e ampliou os estudos, identificando mais quatro sítios, totalizando 48 — situados em localidades como Vila Seca, Ana Rech, Santa Lúcia do Piaí, Vila Cristina, Galópolis e Vila Oliva, além de Criúva.
"A análise desses sítios levou em consideração fatores como altitude, proximidade com fontes de água, relevo e estruturas encontradas. Os resultados indicam que os kaingang habitavam a região entre os séculos III e XIX", contextualiza o material do projeto.
As Caminhadas ao Patrimônio Arqueológico se baseiam em estudos cedidos por Corteletti, com subsídio da vivência de Guadalupe e a mãe, Cláudia Traslatti, 72, em Criúva.
Gruta para sepultamento
A primeira parada em Criúva foi na chamada Toca Santa, uma gruta onde o povo originário organizava cerimônias de sepultamento. Uma caixa de vidro, fixada na parede, guarda uma porção de ossos de dois indivíduos adultos de etnia kaingang.
— Os indígenas enterravam os mortos num formato de feto, com uma fibra ao redor, e colocavam no fundo dessas crateras, abertas artificialmente — explica ela.
Hoje, o local está repleto de imagens de santos, colocadas pós-colonização.
Moradias subterrâneas
Uma das etapas mais aguardadas pelos participantes da caminhada são as áreas em que os indígenas estabeleciam suas moradias subterrâneas. Perto da gruta há um campo aberto onde foram localizadas pelos arqueólogos nove casas — atualmente, os buracos na terra estão rasos devido às intervenções posteriores e à agem do tempo.
Outras quatro moradias subterrâneas, com escavações mais profundas e evidentes, são mostradas por Guadalupe no topo de um morro, a poucos quilômetros de distância. Para chegar lá, é preciso se esgueirar entre uma cerca de arame farpado, que limita o terreno de uma propriedade.
— Esse sítio arqueológico é considerado modificado por causa de uma cerca, que a por cima de uma casa subterrânea — lamenta a condutora de turismo.
Dentro de um dos buracos, os excursionistas podiam verificar marcas do uso de ferramentas indígenas para escavação.
As casas, entretanto, não eram construídas a esmo. De acordo com Guadalupe, os indígenas kaingang viviam estrategicamente na paisagem, e priorizavam fatores como:
- Altitudes entre 751m e 840m acima do nível do mar (57% dos sítios);
- Localização em áreas elevadas para ampla visão do horizonte (64%);
- Proximidade de fontes de água, geralmente a menos de 100 metros de um córrego ou vertente (82%).

Tirando fotos e escutando atentamente às explicações, o casal Valmir Medina, 54, e Claire Riga, 61, aproveitava o roteiro. Eles estão se situando na história da região, já que vieram de São Paulo e moram há um ano em Caxias.
— Quem é de fora da Serra só conhece a história da imigração italiana e gaúcha. Aqui havia habitantes que foram expulsos e é muito interessante conhecer essa origem. O projeto é significativo porque populariza o conhecimento dos povos originários — diz Medina, que é pós-graduado em História das Religiões.
Réplica
A parada final é em uma réplica de moradia subterrânea indígena, idealizada por Guadalupe e Cláudia. A estrutura foi inaugurada neste ano e ilustra componentes possivelmente utilizados pelos kaingang em seus lares, como a cobertura com folhas de jerivá.
Perto do meio-dia, saiu uma sapecada de pinhão — alimento essencial na dieta kaingang —, que fez a alegria dos visitantes. A historiadora e produtora cultural Franciele Oliveira, 26, e o assistente de engenharia Gabriel Fraga, 26, saborearam e aprovaram a proteína recém chamuscada ao ar livre.
— Que a gente possa preservar o patrimônio originário e a natureza, precisamos dela para sobreviver. Já fui em vários sítios arqueológicos, mas gostei da ideia da réplica, nos permite vivenciar — afirma Franciele, que lançou recentemente o projeto Entre Rios, minissérie que dá voz a relatos de mulheres que vivem às margens do Rio Pelotas.
Apesar do término das Caminhadas ao Patrimônio Arqueológico, Guadalupe entende que é necessário provocar novas propostas para ar adiante o conhecimento sobre a vida indígena na Serra:
— Moldamos o melhor para atingir o público e incentivar ideias e mais projetos. Esse é o de Criúva, mas tem patrimônio arqueológico na maioria dos distritos. Daqui a pouco, pode ter uma segunda versão em Santa Lúcia do Piaí, Vila Seca ou Ana Rech.