
A Festa da Uva de 1950, que retornava ao calendário festivo da região após a interrupção decorrente da Segunda Guerra Mundial, ficou marcada por uma série de homenagens e espaços temáticos recordando dos pioneiros colonizadores da região. Um desses locais foi o Pavilhão Histórico Cultural, localizado junto ao parque instalado na Rua Vinte de Setembro. Ali, um grupo de fiandeiras, todas acima de 70 anos, demonstrava o ofício das tecelagem em antigas rocas e fusos, entoando melodias no dialeto vêneto (fotos abaixo).
Mas foi uma outra senhorinha que chamou a atenção naquele 25 de fevereiro de 1950, dia da abertura da festa. Falamos de dona Lucia Munaretto Tedesco, que, aos 101 anos, protagonizou um dos episódios mais lembrados daquela edição. O relato a seguir foi publicado no “Álbum Comemorativo do 75º Aniversário da Colonização Italiana no Rio Grande do Sul”, lançado pela Editora Globo também em 1950:
“Cinquenta máquinas fotográficas estouravam suas lâmpadas na direção do presidente (Eurico Gaspar Dutra), que visitava os estandes agrícolas da exposição. Naturalmente, o que mais havia eram uvas de toda espécie e tamanho. Notava-se até mesmo um cacho-monstro com 10 quilos e meio de peso. O presidente já provara desses frutos, guiado pelas mãos gentis da Rainha da Vindima, Mas, eis que do fundo de um estande surgiu uma anciã toda de preto, que se aproximou do general e estendeu-lhe, com suas grandes mãos calejadas e trêmulas, um belo cacho de uvas moscatel. O silêncio que a cena provocou foi apenas perturbado pelo estouro de algumas lâmpadas. E quando a velhinha, sem haver pronunciado uma só palavra, fez menção de retirar-se, o presidente do Brasil beijou-lhe respeitosamente a mão”.
Na sequência, o texto resumiu a trajetória de dona Lucia. Ela chegou ao Brasil com menos de 30 anos, em 1876, acompanhada do marido, João Batista Tedesco, e de quatro filhos. Após desembarcar por via fluvial em São Sebastião do Caí, rumou ao então Campo dos Bugres no lombo de mulas e abrindo caminho “a facão”.
“A chegada ao Campo dos Bugres não poderia ter sido mais melancólica: mato fechado, meia dúzia de toscas cabanas, selvículas nas redondezas. Mas Lucia achou que a aventura valia a pena e, empunhando o machado, ajudou o marido a construir a primeira tenda e os primeiros móveis que utilizaram na nova pátria”.


Polenta doméstica
O texto de 1950 sobre dona Lucia destacou ainda uma iguaria imprescindível da gastronomia local:
“aram-se os anos. Os filhos de Lucia foram 13, e vieram mais tarde os netos, 180, os bisnetos, 60, e os tataranetos, 6. Os filhos e os filhos dos filhos da pioneira espalharam-se pela região e pelo país. Mas “nonna” Lucia preferiu não abandonar a terra em que tanto trabalhou . Há 19 anos que enviuvou, e há menos de dois anos que a saúde a privou do último trabalho que lhe permitiam: o preparo da polenta doméstica. “A vida sempre foi boa para mim”, disse a velhinha ao repórter”. E nada mais falou, apenas sorriu para tudo quanto os seus fracos olhos de centenária podiam ver naquele dia alvoroçado”.
“Nonna” Lucia faleceu cerca de um ano depois, em 18 de junho de 1951. Ela foi sepultada no cemitério de Monte Bérico da Nona Légua, onde viveu e trabalhou por mais de um século. Segundo matéria do Pioneiro de 19 de junho de 1951, ela era a mais antiga representante do início da imigração italiana na região.

O centenário em 1949
Em 1949, meses antes do encontro com Eurico Gaspar Dutra na Festa da Uva de 1950, Lucia Munaretto Tedesco foi uma das entrevistadas da coluna “Galeria dos Pioneiros”, publicada pelo Pioneiro.A detalhada e espirituosa conversa com o jornalista e historiador Mario Gardelin saiu na edição de 28 de maio de 1949, tendo ampla repercussão. Tanto que dona Lucia logo voltou às páginas do jornal.
Monte Bérico. Toda essa história rendeu uma nova e ampla matéria no Pioneiro, assinada por Isidoro Moretto e ilustrada por fotos de José Dallabilia, em 1º de outubro de 1949.
Tanto a entrevista quanto o centenário de dona Lucia, em 1949, serão abordados em futuras colunas.
