A Cidade do Cabo, na África do Sul, pode ser comparada ao Rio de Janeiro: uma beleza estonteante do encontro entre a cidade e a natureza, uma rica diversidade cultural, a mistura de histórias, a influência das navegações. Impossível não se apaixonar e não considerá-la uma das cidades mais lindas — ao menos quando se frequenta a bolha da alta gastronomia e grandes vinhos. Impossível também não chorar diante da abissal desigualdade — ao menos para quem tem o sangue no mínimo meio grau acima da sua temperatura de congelamento.
A história do apartheid e de suas consequências só desperta emoções que coaches considerariam exclusivas dos derrotados: tristeza, ódio, impotência, ressentimento. Nada que as camisas coloridas pelo sorriso de Nelson Mandela não consigam ressignificar como algo potente, criador e esperançoso. Por isso, eu quis visitar a Robben Island, antiga prisão do regime sul-africano, hoje transformada em museu da memória — um patrimônio da humanidade reconhecido pela Unesco. Obviamente, não fui o único a ter essa ideia, e muito menos o primeiro: os ingressos estavam esgotados.
Meio cabisbaixo, caminhei sem destino pelo Waterfront, inconscientemente guiado pelo som de um xilofone. O som aumentava em intensidade, ganhou harmonia com mais dois instrumentos iguais, ritmo com a bateria e melodia com um trompete malandramente jazzístico. Ao improviso, somou-se um dançarino e, em seguida, outros turistas. Meus ouvidos, preenchidos de música, nem me deixaram sentir o frio do forte vento atlântico — mas meus olhos pararam numa partida de xadrez.
Dois homens jogavam num tabuleiro gigante. Acompanhei, compenetrado, cada jogada, julguei cada movimento equivocado e, ao fim da partida, o vencedor me desafiou. Sem hesitar, fui realizar o sonho de jogar nesse tipo de tabuleiro. Eu de pretas, ele de brancas. Já errei na abertura: as peças pareciam cada vez maiores e, eu, perdido no meio do tabuleiro, parecia o Harry Potter. Após meu adversário anunciar o inevitável xeque-mate, me deu uma dica: é preciso sair do tabuleiro para entender o jogo.
Na revanche, segui a dica de Enzokuhle: entrava no tabuleiro para mexer as peças e saía recuando dois os — assim consegui uma vitória. Disse que estava com fome; ele me respondeu que também. Ele e outros moradores de rua usam o tabuleiro para se afastar dos “maus pensamentos”. Compartilhamos um cachorro-quente e algumas histórias. Depois, descobri que Enzokuhle significa “faça o bem”, em zulu. E ele me fez muito bem.