“Poderia viver sem publicar livros, mas não sem escrever”, diz Alejandro Zambra
“Poderia viver sem publicar 
livros, mas não sem escrever”, diz Alejandro Zambra
  • Fronteiras do Pensamento: Javier Cercas e Alejandro Zambra debatem literatura 

    Fronteiras do Pensamento: Javier Cercas e Alejandro Zambra debatem literatura 
  • – O que bons romances fazem é mostrar que a realidade é sempre mais complexa do que parece, e, desse modo, nos enriquecem a vida e a tornam mais digna de ser vivida.

    Cercas, que esteve em Porto Alegre na última segunda-feira (22/10) para participar do ciclo Fronteiras do Pensamento, no qual debateu com o escritor chileno Alejandro Zambra, concedeu a seguinte entrevista, na qual discute os limites da ficção, suas obras, a crise catalã de um ano atrás e a ascensão recente, no mundo todo, de movimentos populistas de extrema-direita.

    O senhor já definiu o romance como "o reino da ambiguidade". Que espaço ainda há para o romance e seu caráter ambíguo no momento em que a polarização e o maniqueísmo parecem ser a tônica?
    Receio que a polarização e o maniqueísmo tenham sido a tônica em muitos momentos da história – se não quase todos –, muito mais do que agora. Em meu livro El Punto Ciego, aponto que o romance, especialmente a partir do século 19 – que é quando se torna um grande gênero literário, comparável aos gêneros clássicos e ainda mais importante do que eles –, torna-se uma arma de destruição em massa da visão monolítica ou totalitária do mundo, precisamente porque carrega a ironia em seu coração. Em suma, o que bons romances fazem é mostrar que a realidade é sempre mais complexa do que parece, e, desse modo, nos enriquecem a vida e a tornam mais digna de ser vivida. Na verdade, o romance é um jogo, mas é um jogo em que se joga tudo.

    Muitos atribuem ao seu romance Soldados de Salamina o início de uma nova onda de interesse da cultura espanhola pelo período da guerra civil. O senhor acha que o país fez nas últimas décadas o ajuste de contas com esse estágio de seu ado?
    Acho que o país tentou, mas ficou no meio do caminho. De qualquer forma, precisamos reconhecer duas coisas. Primeiro, que não é fácil acertar contas com uma guerra de 43 anos – porque a ditadura de Franco não era mais do que o prolongamento da guerra civil por outros meios. E, segundo, que todas as sociedades – e todos os indivíduos – têm problemas com os piores momentos de seu ado, e é por isso que tentam adoçá-lo, mascará-lo ou simplesmente escondê-lo, mentindo sobre ele. É um erro: a única maneira de assimilar o ado é entendê-lo. E entendê-lo não significa justificá-lo, pelo contrário: é munir-se de instrumentos para não cometer os mesmos erros novamente. Acrescento que temos de desconfiar daqueles que – politicamente, acima de tudo – dizem que é necessário esquecer esse ado e trabalhar para o presente a fim de preparar o futuro. Quem diz isso está tentando esconder alguma coisa, ou ignora que a única maneira de fazer algo útil com o futuro é ter o ado – especialmente o pior dele – sempre presente: quando se esquece o ado, já se está pronto para repeti-lo. É o que está acontecendo agora mesmo no Ocidente: estamos repetindo muitos erros que cometemos nos anos 1930.

    A única maneira de assimilar o ado é entendê-lo. E entendê-lo não significa justificá-lo, pelo contrário: é munir-se de instrumentos para não cometer os mesmos erros novamente. Quando se esquece o ado, já se está pronto para repeti-lo.

    JAVIER CERCAS

    Escritor espanhol

    Em Anatomia de um Instante, o senhor faz a reconstrução de um momento-chave da sociedade espanhola: a fracassada tentativa de golpe para restaurar o franquismo, em 1981. Por que optou por uma abordagem histórica rigorosa para construir a ficção?
    Anatomia de um Instante é um romance, mas é verdade que, como outros livros meus, parte da crônica, do ensaio, da história, da biografia, da autobiografia e outros gêneros. É assim que concebo o romance: um instrumento infinitamente maleável, onívoro e livre, que pode devorar todos os outros gêneros e se aproveitar deles. Mas, como outros romances meus, ele não tem ficção. Por quê? Porque cheguei à conclusão de que esse golpe de Estado, em 23 de fevereiro de 1981 – de certo modo, nosso equivalente do assassinato de Kennedy, na medida em que é o ponto exato para onde convergem todos os demônios da história do meu país –, era uma grande ficção coletiva. Não há um americano que não tenha uma teoria sobre o assassinato de Kennedy, assim como não há um espanhol que não tenha uma teoria sobre esse golpe, ou seja, o episódio foi enterrado em ficções, mentiras e teorias insensatas. Então, decidi que era havia sentido em escrever uma ficção sobre outra ficção, que era redundante e literariamente irrelevante. Achei melhor descobrir a realidade oculta para trás de todas essas ficções e escrever uma história sem ficção, costurada ao real, ainda que, nem por isso, não seja romance.

    Faz um ano que Jordi Cuixart convocou, na Catalunha, um referendo sobre a independência da região, seguido da intervenção do governo espanhol e da prisão de Cuixart. Como o senhor vê os desdobramentos dessa crise?
    O que aconteceu há um ano pode ser definido como uma tentativa de autogolpe civil pós-moderno de Estado, por meio da qual o governo catalão – que goza de enorme autonomia em relação ao governo espanhol – tentou separar a Catalunha do restante da Espanha contra a vontade de mais da metade dos catalães e sem respeitar as normas democráticas mais elementares. Quanto ao grande crescimento do separatismo catalão nos últimos anos, creio que no fim deve ser entendido como a manifestação de um movimento geral no Ocidente que podemos chamar de nacional-populismo e que, em cada país, se manifesta com diversas peculiaridades: nos EUA, chama-se Trump; na Grã-Bretanha, Brexit; na Turquia, Erdogan; na França, Le Pen; na Itália, Salvini etc. Temo que no Brasil se chame Bolsonaro.

    O crescimento do separatismo catalão deve ser entendido como a manifestação de um movimento geral no Ocidente que podemos chamar de nacional-populismo e que, em cada país, se manifesta com diversas peculiaridades: nos EUA, chama-se Trump; na Grã-Bretanha, Brexit; na Turquia, Erdogan; na França, Le Pen; na Itália, Salvini etc. Temo que no Brasil se chame Bolsonaro.

    JAVIER CERCAS

    Escritor espanhol

    Como o senhor vê a ascensão internacional da extrema-direita?
    É uma espécie de máscara pós-moderna e, no momento, mais leve daquilo que, nos anos 1930 e 1940 – após a crise de 1929 –, provocou o nacional-populismo que consolidou o totalitarismo no Ocidente. Hoje vivemos o pós-crise de 2008. Não preciso dizer que é perturbador. Quem não está preocupado com o futuro da democracia é porque não acredita em democracia ou não quer ver a realidade.

    Em El Punto Ciego, seu livro de ensaios sobre o romance, o senhor afirma que todo romance é uma questão cuja resposta é o próprio romance, a história em si. Com quais perguntas o senhor está trabalhando agora?
    Após a conclusão de O Monarca das Sombras, meu romance mais recente, senti que havia chegado ao fim de uma estrada, e que, se continuasse ali, corria o risco de me repetir, que é a pior coisa que pode acontecer a um escritor. Então, ei a escrever um livro que quer ser ao mesmo tempo diferente do que escrevi até agora e muito pessoal. Quero dizer: acho que estou tentando ser outro enquanto ainda sou eu mesmo. Sei que é difícil, mas ninguém disse que escrever era fácil. Como escreveu Faulkner, o máximo a que podemos aspirar é uma derrota honrosa. É a isso que aspiro.

    O senhor já teve romances adaptados para o cinema, alguns em filmes elogiados, como Soldados de Salamina. Como prefere ver o processo de transposição de uma linguagem artística para outra? gosta de ser consultado ou não?
    Quando alguém faz um filme a partir de um livro meu, meu trabalho é não trabalhar, isto é, dar ao diretor total liberdade para que ele possa fazer o que quiser. Acho que é a única maneira de o resultado ser bom. No final, vai ser bom ou não, mas temo que, se o escritor está acima do diretor, dizendo o que fazer e o que não, controlando o filme, o resultado só poderá ser ruim, entre outras razões porque, sobretudo quando se trata de nossos romances, os escritores geralmente não entendem que a linguagem do cinema e a do romance são diferentes, e que, para sermos fiéis no cinema ao espírito de um romance, devemos trair seu sentido literal.

    Outras entrevistas publicadas no caderno DOC

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