Velório e enterro da matriarca, Dona Carmelita, representam defesa da memória e da coletividade em "Bacurau". vitrine filmes / Divulgação
Teresa retornou para o enterro da avó, Dona Carmelita (Lia de Itamaracá, uma famosa cirandeira de Pernambuco), que reuniu todos os habitantes, em uma sinalização sobre a importância da preservação da memória. Sua mala a de mãos em mãos até ser acomodada dentro de casa. É um gesto que estabelece e dá rosto ao protagonismo coletivo de Bacurau.
Se no filme anterior de Kleber, Aquarius (2016), a personagem principal era uma burguesa que lutava sozinha, agora a resistência é compartilhada por toda sorte de tipos marginalizados: somam-se às mulheres os negros, os nordestinos, os indígenas, os professores, as prostitutas, os homossexuais (como a médica lésbica vivida por Sônia Braga), transexuais e até mesmo bandidos.
Os vilões de Bacurau são aqueles que costumam ser os mocinhos em boa parte dos títulos exibidos no Brasil: os estadunidenses. O estranhamento é reforçado pela dublagem do elenco estrangeiro, com vozes que o público reconhecerá de filmes, desenhos animados e seriados nos quais estão do lado do bem — Mauro Ramos, por exemplo, fez o Sulley de Monstros S.A. e o Pumba de O Rei Leão, Carol Valença é a Supergirl da série homônima, Márcio Araújo empresta seu talento ao Homem-Formiga no Universo Cinematográfico Marvel. De uma tacada só, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles criticam o que veem como subserviência política, econômica e cultural do Brasil em relação aos Estados Unidos.
Para realizar seu safári humano, o grupo de assassinos liderado pelo alemão Michael (o veterano Udo Kier, sempre aterrador com seus frios mas intensos olhos azuis) conta com a colaboração de dois brasileiros oportunistas — vindos do Sul, eles frisam — e o apoio do prefeito Tony Júnior (que parece viver em uma realidade paralela, a da elite, e que, em nome de votos, distribui alimentos com prazo de validade vencidos e remédios tarja preta à população).
O controle também é tecnológico: graças a drones, a trupe observa o dia a dia dos moradores (como se fossem as empresas que acompanham cotidianamente nossos os digitais), e Michael chega a riscar Bacurau do Google Maps.
Em contraponto à invasão estadunidense, Bacurau investe em uma brasilidade tipicamente nordestina, do suco de caju ao repentista, ainda que temperados pelo sincretismo — outra marca nacional difundida a partir da região, principalmente na Bahia. Em uma bela cena de capoeira, que ilustra a comunhão dos bacurauenses, a sonoridade afro-brasileira logo dá lugar aos sintetizadores de Night, do americano John Carpenter.
A cidade abraça as trocas culturais, mas também celebra seus heróis da resistência — do paraibano Geraldo Vandré, ícone das canções de protesto na época da ditadura militar, presente na trilha sonora, ao pernambucano Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, mais célebre cangaceiro da história, evocado em Lunga, personagem trans que o cearense Silvero Pereira encarna com paixão. Há uma confluência entre brutalidade e sensibilidade em Lunga: assim como Lampião, corta cabeças; assim como Lampião, era alfabetizado — o Rei do Cangaço do século 21 "escreve textos muito bonitos", diz o professor Plínio (papel de Wilson Rabelo).
ATENÇÃO: se você ainda não viu Bacurau, o parágrafo abaixo pode conter SPOILERS.
É Lunga quem comanda o sangrento desfecho de Bacurau, que, em meio à violência dos personagens, tem pelo menos dois detalhes cenográficos que merecem sua atenção. Primeiro: em uma televisão, uma manchete de um canal noticioso anuncia que "execuções públicas recomeçam às 14h no Anhangabaú" — o espaço tradicional de shows e comícios no centro de São Paulo virou palco da barbárie institucionalizada. Segundo: os lugares onde a população de Bacurau se protege e se arma para enfrentar os invasores são uma escola e um museu. Educação, cultura e memória significam a sobrevivência de um povo.
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