
Cada vez mais recorrente, o uso da inteligência artificial (IA) para traduzir produções audiovisuais vem desafiando os dubladores a encontrar soluções para garantir a sobrevivência da profissão — e seus direitos autorais.
Em 2024, a plataforma de streaming Globoplay empregou IA no documentário Rio-Paris: A Tragédia do Voo 447 (2024). A série, que tem direção de Rafael Norton, emite um comunicado sobre o uso dessa tecnologia antes de cada episódio.
Na ocasião, a Globo declarou, em nota, que "sempre esteve na vanguarda da inovação tecnológica e não tem sido diferente com a adoção da inteligência artificial (...), sempre de forma ética, com transparência, buscando a qualidade e respeitando a questão dos direitos".
Recentemente, o Prime Video, da Amazon, utilizou dublagem feita por IA no filme O Silêncio de Marcos Tremmer (2024), coprodução entre Espanha e Uruguai que recebeu críticas pelo resultado pouco natural. O longa-metragem segue no catálogo da plataforma, mas a opção da voz gerada por máquina não está mais disponível.
Depois, o Prime Video anunciou que lançará um programa para gerar dublagens automáticas de seus conteúdos por IA — por enquanto, apenas em traduções para inglês e espanhol e de filmes que não têm dublagem feita por humanos.
Procurada pela reportagem, a assessoria do Prime Video afirmou que a empresa "não vai conseguir participar da pauta no momento".
Polêmica no Oscar
O professor Roberto Tietzmann, da Escola de Comunicação, Artes e Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), observa que grandes canais do YouTube já utilizam IA na dublagem para chegar a usuários de diferentes países.
Outro exemplo é a recente polêmica com o uso da tecnologia para aprimorar o sotaque húngaro dos atores do filme O Brutalista (2024). Houve repercussão no meio cinematográfico, críticas e até mudança nas regras do Oscar. Mesmo assim, Adrien Brody, protagonista da obra, que teve sua performance aprimorada com IA, venceu a estatueta de melhor ator.
Equilíbrio entre homem e máquina
Foi quase uma validação, um "pode ar" para a ferramenta, segundo Tietzmann:
— Estamos em uma fase de normalização. Por outro lado, tem todas essas questões do trabalho dos dubladores, que está em risco neste momento. São necessárias regulamentação e medidas sindicais para que eles possam seguir com o seu espaço na dublagem. E o público em geral, entre ler uma legenda e ouvir dublado, mesmo com o áudio meio robótico, talvez prefira ouvir dublado.
O professor salienta que, por ser uma tecnologia muita nova, há poucos exemplos mundiais de regulamentação que possam servir como base para o Brasil. Segundo ele, a transformação se assemelha à provocada pelo Google Tradutor: a ferramenta tomou o lugar de algumas pessoas que poderiam fazer o trabalho, mas tradutores seguem existindo. Seria, então, uma questão de encontrar o equilíbrio entre o homem e a máquina.
Tripé de proteção para os dubladores
Por conta dessas ameaças à classe, os dubladores correm contra o tempo para defender a aprovação do projeto de lei 2.338/2023, que poderia, segundo eles, mudar o cenário de insegurança.
O texto foi aprovado pelo Senado em dezembro do ano ado, mas ainda precisa ar pela Câmara dos Deputados e pela Presidência para ser sancionado.
Para Angela Couto, uma das porta-vozes da iniciativa Dublagem Viva, o PL oferece um tripé de proteção para os dubladores, com regulação, compensação e rotulação.
A IA hoje ainda é muito precária, a qualidade é muito ruim (na dublagem). Não prevemos que seja utilizada logo, mas estamos pensando em uma legislação e regras para o futuro
ANGELA COUTO
Uma das porta-vozes da iniciativa Dublagem Viva
Regulação significa detalhar, no momento do contrato, para quais fins a voz do dublador será usada. Compensação é o pagamentos dos direitos autorais caso a voz do profissional seja utilizada para alimentar uma IA. E rotulação é sinalizar que determinada obra utiliza IA, incluindo uma ficha técnica detalhada.
— Essa ficha técnica tem que dizer de quem são as vozes utilizadas pela IA e se ela é uma réplica ou sintética. A réplica é a própria voz do dublador, reproduzida. Ou seja, a minha voz transformada para dizer outras coisas. Já a voz sintética é construída a partir de dados biométricos do dublador, falando em português, com a voz do ator original sendo uma "máscara". É um esqueleto falando em português e a máscara cobrindo para parecer que é o próprio ator original. É a junção de duas vozes criando uma terceira — explica Angela.
Propriedade intelectual
Essa transparência, defende ela, é o que os dubladores precisam de maneira mais urgente para proteger suas propriedades intelectuais. De acordo com a dubladora, esse tipo de rotulação já é empregada nos trabalhos realizados com IA na China. Não impede que sejam realizados, mas detalha como o processo é feito, dando os devidos créditos.
— A IA hoje ainda é muito precária, a qualidade é muito ruim (na dublagem). Não prevemos que seja utilizada logo, mas estamos pensando em uma legislação e regras para o futuro. Precisamos vislumbrar essa possibilidade de uma forma positiva, sem fugir ou criando um mecanismo de proibição puro e simples. A gente já faz licença de uso dos nossos direitos. O que não pode é o nosso trabalho ser usado à revelia e sem a devida compensação — complementa Angela.