O que posso dizer, sem avançar no sinal, é que os personagens principais são os Kim, uma família de desempregados em busca de ascensão. Literalmente, afinal, eles moram em uma casa onde quase metade do pé-direito fica abaixo do nível da rua. Volta e meia, sua "vista" é atrapalhada por um bêbado urinando na sarjeta. Os quatro se sustentam à base de bicos, como montar embalagens de pizza, caçam o wi-fi da vizinhança e mal se incomodam quando o inseticida aplicado na calçadas entra pela janela – "Dedetização grátis!", diz o pai. Esse cotidiano começa a mudar quando Ki-woo, o filho, ganha de um amigo a oportunidade de se ar por professor de inglês para a filha adolescente de uma família rica, os Park. Será a porta de entrada para um mundo melhor?
Parasita é um filme que, em seu início, parece uma comédia farsesca. Depois, com um misto de fluidez e imprevisibilidade, deriva para o thriller de suspense, para o drama social, para o terror urbano, até que tudo se embaralha. Essa transição entre gêneros e entre tons (da caricatura à gravidade) é uma característica na obra do diretor, Bong Joon-ho, 50 anos. O Hospedeiro (2006), o título que o lançou para o mundo, é uma ficção científica sobre monstros, mas também traz humor ácido e crítica política. Mother – A Busca pela Verdade (2009) imbrica investigação policial e discussão filosófica. Okja (2017) mescla fábula Disney, discurso ambientalista e sátira do capitalismo globalizado ao retratar a relação entre uma criança e um porco geneticamente modificado.
Este é o tópico que pode conter SPOILERS. Portanto, leia por conta e risco ou pule para o próximo. Seguimos? Ok. Em um mundo onde os 26 mais ricos somam o mesmo patrimônio dos 3,8 bilhões mais pobres, Parasita não tem pudor em apontar para quem devemos estender nossa empatia. Sim, os protagonistas são trambiqueiros e tomam algumas atitudes drásticas que acabam voltando-se contra eles. Mas pai, mãe, filho e filha são unidos, riem juntos, esforçam-se para estarem sempre perto uns dos outros, ao contrário da família da mansão, que quase nunca aparece reunida e que trata as pessoas como produtos descartáveis – demitir alguém que trabalha há anos para eles não provoca dor de cabeça. Aliás, vivem tão despreocupadamente, que acabam alheios à pobreza que os rodeia. A não ser que os miseráveis estejam debaixo de seu nariz. Ah, aí o preconceito vem à tona – a certa altura, o empresário do ramo da tecnologia reclama do "cheiro de rabanete velho" que sente quando precisa usar o metrô. Para quem viu a recente adaptação cinematográfica do seriado Downton Abbey, Parasita será uma espécie de contraponto. Se no filme britânico empregados brigam pela honra de servir a realeza, no filme sul-coreano pobres duelam entre si pela sobrevivência, mesmo que isso signifique subserviência, insalubridade e exploração de sua mão de obra. Se em Downton Abbey os patrões são amistosos, a ponto de a indiscrição de um valete gerar não mais do que um olhar de espanto, em Parasita o senhor do castelo deixa claro que há um fosso social a ser respeitado: "Não o pessoas que cruzam o limite".
Os cenários e os enquadramentos foram bastante planejados para ilustrar e reforçar os pontos citados no item anterior. Os Kim moram todos apertados, isto é, estão muito próximos. A casa dos Park tem espaços abertos, quase vazios, simbolizando a falta de calor humano entre os integrantes da família. Merece destaque, como bem apontou o crítico Inácio Araújo na Folha de S.Paulo, o buraco negro que delimita, na mansão, o espaço dos ricos, o que inclui uma sala com ampla iluminação natural, e o dos pobres, subterrâneo e escuro. Estes últimos, em uma sequência importante, são mostrados em posição subalterna em relação aos primeiros. São como as baratas que rastejam no lar dos Kim.
Direção vigorosa, roteiro brilhante e competência técnica seriam desperdiçados se não houvesse atores que, a despeito de um idioma com o qual estamos pouco habituados, se comunicassem tão bem com o espectador. O jovem Choi Woo-sik, que encarna Ki-woo, será nossos olhos, cheios de esperança e de espanto. Park So-dam faz a cínica e esperta irmã, Ki-jung. Jang Hye-jin empresta dureza e dedicação à mãe, Chung-sook. Lee Sun-kyun e Jo Ye-jong, que interpretam o casal Park, cumprem muito bem seus papéis — ela como a mulher sonsa, ele como o homem insensível. Mas é de Song Kang-ho, um habituê dos filmes de Bong Joo-ho, o grande desempenho de Parasita. Na pele do pai dos Kim, Ki-taek, um sujeito aparentemente cansado pela vida, mas ainda conhecedor dos atalhos, Kang-ho profere o monólogo que parece sintetizar as consequências do apartheid social retratado pelo diretor – um tema que Joon-ho já havia abordado no drama pós-apocalíptico
O Expresso do Amanhã (2013), sua adaptação para uma história em quadrinhos sa. Esse abismo, que não se restringe à Coreia do Sul, que pode ser observado em qualquer grande cidade brasileira, acaba por anular os sonhos e por produzir resignação.
— Se você faz um plano, a vida nunca funciona assim. O melhor plano é não ter planos — diz Ki-taek. — Sem planos, nada pode dar errado. Se algo fugir do controle, não importa.