O Coringa avisa sobre como, coletivamente, negligenciamos e estigmatizamos alguns dramas individuais:
— A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse uma. 
O Coringa cobra nossa falta de empatia:
— Ninguém pensa em como é ser o outro cara!
O Coringa ameaça sobre iminentes tragédias:
— As pessoas estão cansando de fingir!

É um grito de guerra, um convite para que todos exorcizem seus demônios interiores lançando o inferno sobre a Terra. Não à toa, nos EUA, o FBI (a polícia federal) notificou o Exército sobre postagens de extremistas em redes sociais, e grandes redes de cinema (Landmark e AMC) proibiram a entrada de espectadores com máscaras, maquiagem ou qualquer objeto que esconda o rosto. Teme-se a possibilidade de ataques como aquele perpetrado durante uma sessão de Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012) em Aurora, no Colorado. Munido de um rifle e duas pistolas, James Holmes, um jovem de 24 anos sem amigos, matou 12 pessoas e teria se autodenominado como Coringa. Familiares dos mortos enviaram uma carta à produtora Warner, preocupados com o impacto do filme (mas não pediram censura nem adiamento). 

Todd Phillips está e sempre esteve ciente da efervescência de Coringa. Em entrevista recente, ele disse que "certamente não é um filme político". O personagem diz a Murray Franklin que não é um político e que só quer fazer as pessoas rirem – um lembrete tardio de que estamos assistindo apenas a uma obra de entretenimento. Há outras salvaguardas: depois de justificar a violência de Arthur, o diretor exagera essa violência. Mas, em que pese a brutalidade empregada, o estrago já está feito. E não ajuda o fato de que, mesmo na explosão de agressividade, o personagem demonstre ter um código de ética: ele poupa o único colega de trabalho que o ouviu. Só pune quem "merece" ser punido, como se espera não de um vilão, mas da Justiça.

Coringa não é, como pretendia seu diretor, apenas um filme que mostra como a sociedade, ao não ser empática, pode produzir monstros; mas, sim, um filme que mostra a violência como um caminho para a afirmação da identidade, da redenção, da luz. Não por acaso, termina com um fade-out às avessas: depois que o Coringa tinge com seus pés ensanguentados o branco do corredor de um hospício, depois que ele dança, outra vez, ao som de uma música bacana e em câmera lenta, a tela se ilumina por inteiro, fica completamente imaculada antes que possamos ver o vilão contido.

— O que você ganha quando cruza um doente mental com uma sociedade que o abandona e o trata como lixo? — pergunta Arthur Fleck, já transmutado em Coringa, em rede nacional de TV.

O questionamento poderia ser devolvido a Todd Phillips:

— O que você ganha quando cruza uma sociedade doente com um filme que ampara e trata como heróis personagens tipo o Coringa?

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