O estupro é o mais subnotificado dos crimes. Os especialistas calculam que chegam às delegacias no máximo 10% dos casos.
A felicidade foi interrompida pela execução de Valdo na esquina da biqueira, três anos depois.
Juci foi para a casa dos avós na Bahia. Maria se juntou a um grupo de amigos do traficante, especializados em roubo a bancos.
Perdeu a conta de quantas agências assaltaram. No início, sua função era vigiar a porta, para avisar a quadrilha pelo celular à primeira aproximação estranha. Com o tempo e a experiência, ou a ser a responsável pelo planejamento da fuga e a comandar a ação no interior da agência.
Não casou nem teve filhos. Desconfio que nunca namorou.
— Peguei bronca de homem. No assalto fico com pena das mulheres, tenho compaixão. Os homens? É sem piedade. Sinto prazer de humilhar, de meter a arma na cabeça e mandar ajoelhar nos meus pés.
Em 13 anos de trabalho médico na Penitenciária Feminina de São Paulo, atendi centenas de presidiárias com histórias de estupro na infância. Violência sexual contra crianças existe em todas as classes sociais, mas na periferia de nossas cidades é epidemia.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), das 60 mil queixas de estupro apresentadas nas delegacias, em 2016, cerca de 50% ocorreram com crianças abaixo de 13 anos e 20%, com adolescentes de 14 a 17 anos.
Portanto, 70% das vítimas são menores de idade, estupradas dentro de casa, em sua maioria, pelo padrasto, por pai, tios, avós e vizinhos, tragédias encobertas pelos familiares e pelas próprias vítimas indefesas e mortas de vergonha.
É o mais subnotificado dos crimes. Os especialistas calculam que chegam às delegacias no máximo 10% dos casos. Entre os meninos atacados na infância a subnotificação é ainda maior.
A certeza da impunidade e a incompetência da Justiça, reflexo do acovardamento da sociedade, estão por trás da perpetuação desses crimes hediondos.
Enquanto ignorantes autointitulados defensores da família se distraem discutindo conceitos abstratos como “ideologia de gênero”, viramos as costas à violência sexual praticada todos os dias contra as nossas crianças.