Uma fábrica de órfãos 

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Paula deixou um filho órfão

Nem a existência de filhos é empecilho para que o crime aconteça. Das 62 vítimas, foi possível identificar que 45 (72,5%) eram mães. Elas deixaram, no total, 81 órfãos. Com a filha nos braços, uma mulher de 33 anos (que aqui não identificamos para preservar a criança) foi morta a facadas em Farroupilha, na Serra. A menina, de um ano e dois meses, também foi atingida, mas sobreviveu.

— Muitas vezes a mulher pensa: "Ele é agressor, mas é bom pai". Não existe bom pai agressor. Tem crianças muito pequenas que interferem, que fogem para pedir ajuda ao vizinho, que presenciam o pai matando a mãe — diz Tatiana.

No nordeste brasileiro, uma pesquisa da Universidade Federal do Ceará (UFC) realizada em nove Estados apontou que um terço das mulheres assassinadas deixa três filhos.

— E grande parte desses órfãos ficam sendo criados pela família do assassino — pontua José Raimundo Carvalho, professor da Pós-Graduação em Economia da UFC, que coordena a Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Familiar contra a Mulher.

No Rio Grande do Sul, não há dado preciso sobre o número de órfãos. Em 2012, reportagem de ZH mostrou que as 99 mulheres vítimas de feminicídio naquele ano deixaram 157 filhos.

No Nordeste, o estudo acompanhou 10 mil famílias. O objetivo, agora, é ampliar a pesquisa para outros locais, incluindo o Rio Grande do Sul. O levantamento, que depende da liberação de recursos do governo federal, seria feito com mil a 1,2 mil mulheres em Porto Alegre.

— O Rio Grande do Sul é um Estado que também tem uma cultura já sedimentada de machismo. É parecido com o Nordeste. A expectativa é que o projeto vá a campo entre março e abril de 2019 - afirma Carvalho.

A pesquisa mostrou ainda o impacto da violência doméstica no mercado de trabalho. O custo estimado é cerca de R$ 1 bilhão por ano, com base no número de mulheres agredidas que têm de faltar no emprego.

— Muitas mulheres am a noite apanhando e vão trabalhar. É claro que não vão render a mesma coisa. Esse custo não contabilizamos. É algo que o setor privado precisa pensar — comenta.

Segundo o 12º Anuário Brasileiro da Violência, o Rio Grande do Sul aparece em terceiro lugar no país em feminicídios - atrás de Minas Gerais e São Paulo. Com 83 registros em 2017, apresentou redução de 14%: em 2016, foram 96 feminicídios. Quando considerada a taxa por 100 mil mulheres, o Estado é 10º no ranking, com 1,4 feminicídios - mesmo índice de Minas Gerais, Santa Catarina e Maranhão.


Proteger e prevenir 

Carlos Macedo / Agencia RBS
Delegada Tatiana Bastos, responsável pela Delegacia da Mulher, onde é feita mensuração de risco dos casos

Há um ano, a Delegacia da Mulher de Porto Alegre mensura o risco das ocorrências, como forma de evitar que os casos de violência em geral cheguem à morte. Entre os sinais de alerta, estão o descumprimento de medidas protetivas, reiteradas ocorrências, dependência química e uso de arma dentro de casa - como a faca, por exemplo.

A juíza Madgéli Frantz Machado, titular do 1º Juizado de Violência Doméstica de Porto Alegre, lembra que a Lei Maria da Penha prevê aspectos como prevenção e tratamento, mas são necessárias políticas públicas para que isso ocorra na prática.

— Muitas mulheres não têm capacitação. E, se forem trabalhar, não têm onde deixar os filhos. Enfrentamos dificuldades imensas de conseguir vaga em escola quando precisamos mudar a vítima de endereço. Algumas não têm agem de ônibus para se deslocar para receber atendimento. A questão da violência doméstica precisa ser prioridade — defende.

A promotora Cristiane considera que é preciso implementar a lei de forma mais completa, especialmente na prevenção e na articulação das redes de proteção.

— O Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídios do mundo. Precisamos atuar para interromper o ciclo da violência antes que a morte ocorra. A gente precisa compreender que a violência doméstica é fenômeno complexo e multifatorial. A tutela penal, ainda que reforçada, de forma isolada não faz frente ao problema — afirma.


A barbárie dentro de casa

Mateus Bruxel / Agencia RBS
Jovens com camiseta que lembra irmã, vítima de feminicídio em fevereiro, aos 16 anos

A média de idade das vítimas de feminicídio em 2018, no Rio Grande do Sul, conforme levantamento de ZH, é de 37 anos. A mais jovem, morta em Santana da Boa Vista, na Campanha, tinha 15 anos. Ela, que residia no interior do município, foi asfixiada pelo namorado, que se suicidou na sequência.

Essa é uma característica que diferencia o feminicídio. Dos suspeitos dos 62 assassinatos, 14 se suicidaram (23% dos casos). Há um 15º caso com indicativo que o autor tenha se matado — mas o corpo não foi localizado. Esse aspecto leva a polícia a comparar o feminicídio com o terrorismo.

— Só terroristas não se importam de morrer. O assassino vai fazer isso nem que seja o último ato da vida dele. Vai matar na frente dos pais, dos vizinhos, dos filhos, em qualquer ambiente — interpreta a delegada Tatiana.

Acostumada a dar palestras há oito anos sobre o tema, a policial entende que é preciso educar as crianças para romper com o ciclo de insegurança e linguagem violenta. Defende que se preparem meninos e meninas para uma sociedade igualitária.

— A violência doméstica deforma toda a sociedade. Ela corrompe a família, a comunidade, todo o tecido social. A gente fala que é a origem de todas as violências. Temos de pensar que pessoas estamos formando. Há um abandono emocional, que gera indivíduos inseguros. E o indivíduo inseguro tende a, ali adiante, tornar-se agressor. Ou vítima — analisa Tatiana.

Sem denúncia, risco aumenta

Autora do livro Violência Doméstica Contra a Mulher - Programas de Intervenção com Agressores e sua Eficácia como Resposta Penal, a promotora Catiuce Ribas Barin argumenta que o feminicídio como regra é continuidade de violências anteriores. 

— O assassinato é o fato extremo, uma ponta de violências perpetradas antes. Certamente houve injúria, difamação, ameaça, agressão, tudo isso antes da morte. O número dos registros retrata infimamente a realidade vivida. São pequenos os números de registros frente à violência do mundo real — diz. 

É consenso entre especialistas que os casos de violência doméstica que chegam à polícia representam parcela ínfima dos que realmente ocorrem - há muitos que não são registrados. Para tentar alcançar as mulheres vítimas, as delegacias especializadas realizam atividades preventivas, como a distribuição de materiais informativos e palestras. 

— Tem risco ao denunciar? Tem. Mas tem muito mais se a mulher não falar nada. Se ela está sozinha, calada, sofrendo, só pode ser vítima de violências cada vez mais graves. Todas essas mulheres mortas gritaram, pediram socorro, apareceram lesionadas. E ninguém fez absolutamente nada. Quem consegue mudar essa dinâmica é quem está no entorno. É um compromisso que a sociedade precisa assumir — avalia Tatiana. 


Oscilação nos números

Em 2012, primeiro ano em que a Secretaria da Segurança Pública compilou dados, 101 mulheres foram vítimas de feminicídio no Rio Grande do Sul. Em 2017, foram 83. Em 2018, até o fim de setembro, há 70 registros, oito além dos 62 mapeados por ZH. As delegacias especializadas e a Patrulha Maria da Penha são apontados como políticas de coibição aos crimes. 

A abertura de novas unidades de Salas Lilás, para atendimento às vítimas, e a implantação de um aplicativo que permite às cadastradas acionar um "botão do pânico" - implementado no bairro Restinga, na Capital - também contribuem para reduzir os índices. 

No país, o Rio Grande do Sul é o terceiro Estado com mais feminicídios, segundo o 12º Anuário da Violência — só Minas Gerais e São Paulo têm mais casos. Veja, abaixo, a evolução dos feminicídios no Estado ano a ano.

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