A tal sensação de vida devolvida, acredito eu, vem de um equilíbrio complexo entre o novo (que provoca estranhamento) e o familiar (que provoca reconhecimento). Fiquei pensando nisso ao assistir, semana ada, aos oito episódios de Stranger things, a série original da Netflix. Talvez o que mais se fale sobre Stranger things é o quanto a série está apinhada de referências aos anos oitenta, o que faz com que ela tenha uma vantagem na largada para toda uma geração: a empatia é imediata assim que você vê aquelas bicicletinhas, as roupas e o corte de cabelo de Barb, ou uma mera fita cassete.
De certa forma, a nostalgia – da qual todos nós estamos carregados – vem sempre acompanhada de um desconforto em relação ao presente. Hawkins, a cidadezinha-feita-para-a-ficção de Stranger things, é a concretização da simplicidade. Saem os celulares, entram os limitados walkie-talkies. Sai Pokémon Go, entra Dungeons&dragons (imaginação, algumas miniaturas de monstros, dados). Cimente isso com sentimentos nobres das personagens, tais como lealdade e obstinação, e se torna bem difícil essa história desagradar alguém. Monstros à parte, o universo tem algo de muito acolhedor, e mesmo a trama do projeto ultrassecreto do governo transpira uma certa ingenuidade. É como se nos entregassem a comida da mamãe em um prato de duralex (1986), não um burguer com cogumelos flambados no uísque acompanhado por chips de batata doce (2016).
O que quero dizer com isso é que o estranhamento, necessário para toda a obra de arte, como já dizia Chklovski há cem anos, pode vir justamente daí: do embate entre nosso mundo contemporâneo e aquele mundo de antes. Digamos que é um estranhamento um pouco domesticado, uma vez que ele não nos faz olhar as coisas comuns de outro ângulo, mas apenas lembra que elas existiram e que, por todo esse tempo, a gente vinha sentindo saudade delas.
Portanto nenhuma chave sobre a sua vida vai estar ali, o que de qualquer maneira nunca foi o objetivo de obras que jogam com o sobrenatural; você provavelmente vai achar o desfecho insatisfatório, porque tudo que cria mistério demais tende a nos frustrar, como se a graça toda estivesse no meio, nunca no fim; mas quando alguém falar em Atari, você vai sorrir. Agora parece que já deu tempo do banal de sua infância virar alguma coisa cinematograficamente interessante.