
Longas faixas de terra despontam entre as curvas da serra, em Farias Lemos, interior de Bento Gonçalves. O cenário, antes totalmente coberto por mata nativa, é um vestígio dos estragos causados pelos deslizamentos, que assolaram a região durante maio. O novo formato da paisagem se tornou "comum" aos moradores da região. Primeiro por obrigar a saída de casa e agora pelos desafios que impõe aos que começam a retornar.
Desde o início das chuvas de maio, a prefeitura de Bento Gonçalves mapeou 309 famílias que precisaram deixar as residências no interior por riscos de deslizamentos. Em 4 de junho, cerca de um mês depois, parte desses moradores foi autorizada a voltar. Até o momento, 138 famílias tiveram a liberação do Núcleo de Riscos Geológicos e Defesa Civil do município para regressar às residências em que vivem e trabalham.
É o caso do agricultor Alfeu Flamia, 74 anos, morador de Linha Alcântara. Ele e a esposa, Neusa Flamia, 71, aram 23 dias na casa da filha, em Bento Gonçalves. Isso porque, além da elevação do arroio que a próximo à casa, o terreno ao redor da propriedade foi atingido por desmoronamentos.
— Eu estava ali com a minha filha Fabiane quando vimos poeira vinda do morro. Ela gritou “pai, corre!”. Nisso aquele paredão desceu com um estouro que a gente nunca tinha ouvido. Demos alguns os para trás e vimos a lama sendo jogada por uns 20 metros — relembra.
O deslizamento praticamente ilhou a casa de Flamia. Ele calcula que dos 13 hectares que tinha, apenas seis sobraram. Nenhum animal da criação foi perdido graças ao auxílio dos vizinhos, que tomaram conta dos bois, galinhas e porcos na ausência dele.
Um pequeno canavial, cultivado para a produção de cachaça, também foi afetado, mas a maior preocupação é com as parreiras, situadas em uma área mais afastada, que teve o o bloqueado pelo deslizamento de terra.
Mesmo diante da camada de lama de três metros de altura que se interpõe entre a casa e a outra margem, o agricultor não perde a esperança de retomar a rotina tranquila na propriedade da família.
— Não é só a gente que perdeu bastante coisa. Eu tenho 74 anos, sempre vivi aqui e agora deixar tudo isso seria um desperdício. Tem uma parte da propriedade que não foi atingida, vamos ver se dá para colocar o canavial lá. Sobre as parreiras, estou esperando os técnicos da vinícola que sou associado avaliarem a situação. Mas vou continuar aqui, na terra que o meu avô comprou — declara.
O recomeço de quem ainda não voltou
O sorriso permanente no rosto de Emerson Cimadon, 48, contrasta com a lama e a destruição no terreno em frente à sua casa. A propriedade, em Faria Lemos, é uma das 178 residências no interior de Bento Gonçalves que aguardam a avaliação do Núcleo de Riscos Geológicos.
Fora de casa desde o dia 3 de maio, após os primeiros deslizamentos acontecerem, Cimadon não tem perspectiva de quando poderá regressar. Mesmo assim, não abandonou o local que, além da residência, tem as parreiras de uva da família.
Quando as chuvas cederam, o agricultor começou uma ida e volta diária entre o centro de Bento Gonçalves até o interior: de noite fica na casa de familiares e durante o dia, vai a Faria Lemos para trabalhar.
— Estamos vindo para poder tocar a propriedade, porque precisamos tirar algum dinheiro para o sustento. Enquanto não temos um laudo que nos permita voltar mesmo, seguimos desse jeito — resume a situação.
Os desmoronamentos de terra afetaram uma das áreas de parreiras, criando um vão de escombros com terra e galhos. Contudo, ele e a família ainda planejam como recuperar o espaço. O foco dos esforços está nas proximidades da casa, que segue coberta por uma espessa camada de lama.
Em meio à limpeza do local, o agricultor frisa o empenho em recuperar o lar e a determinação em seguir a vida em Faria Lemos.
— Medo a gente tem, mas também precisamos acreditar que os desmoronamentos não voltem, porque senão a gente não consegue viver. No verão eu quero subir lá em cima com os vizinhos, naquele paredão, onde tem umas grutinhas, para colocar uma santa lá. Diante de tudo que poderia ter acontecido, nós estamos salvos e determinados a recuperar nosso lugar — diz.
Controle e estudo irão determinar o futuro das localidades próximas aos deslizamentos
O monitoramento constante das áreas afetadas pelas chuvas não deixou dúvidas: os desmoronamentos foram o principal desafio para manter a população segura. Contudo, os reflexos exigem atenção.
Nas regiões em que os moradores já foram liberados foi constatada a estabilidade do solo. Conforme o coordenador do Núcleo de Riscos Geológicos, Lucas Barbosa, não há risco iminente de novos deslizamentos.
— Mas os residentes precisam continuar seguindo os sinais da Defesa Civil. Caso tenhamos outros episódios de chuvas intensas, eles podem ser orientados a sair de casa novamente — complementa Barbosa.
Nas regiões que seguem em análise, rachaduras no solo são a maior apreensão. Isso porque essas aberturas são instáveis. Avaliações individuais dos terrenos atingidos devem ser acontecer nas próximas semanas. Ainda, a Defesa Civil avalia a situação de rachaduras em residências nas Linhas Alcântara e Colussi.
Em paralelo, o Núcleo trabalha em um relatório dos trabalhos realizados que deverá basear a elaboração de um plano de ação para futuros eventos. O protocolo será desenvolvido pela prefeitura de Bento Gonçalves.
De acordo com o secretário municipal de Segurança e coordenador da Defesa Civil, Paulo César de Carvalho, o documento trará um plano com protocolos pré-estabelecidos para que o poder público siga em outros momentos de crise climática.
O responsável pela pasta não detalhou as ações planejadas, mas indicou a adoção de ferramentas para acionar a população em caso de risco iminente. Segundo Carvalho, os cadastros dos moradores obtidos em maio seguirão com a Defesa Civil como um dos principais canais de comunicação com a população do interior.