
Brincar é mais do que um direito das crianças. É uma linguagem emocional, uma ferramenta de autorregulação e uma prática que acompanha toda a vida. Especialistas em saúde mental destacam a importância do lúdico também na adolescência, na vida adulta e na velhice.
“Brincar é uma forma de elaborar sentimentos, vínculos e experiências pretéritas. Regula o estresse, desperta interesses, aprimora a criatividade e desenvolve regulação emocional”, explica a psicóloga Laís Mutuberria.
Na vida adulta, o brincar pode surgir em hobbies, esportes, arte, games ou nas interações com os filhos. Quando espontâneo e prazeroso, é sinal de saúde emocional. No entanto, algumas formas de brincar ganham contornos mais complexos.
Função emocional dos brinquedos
Vídeos sobre bonecas reborn — réplicas hiper-realistas de bebês — viralizaram nas redes com simulações de maternidade: festas, idas à escola e até tentativas de registro civil. Por trás dessas encenações, há experiências simbólicas que exigem olhar clínico. “O problema não está no brinquedo, mas na função emocional que ele assume”, alerta Laís Mutuberria.
Na prática clínica, o brincar é usado como ferramenta terapêutica, inclusive em adultos. No caso das bonecas reborn, o alerta está no momento em que o objeto lúdico a a substituir vínculos reais. “Se ele ultraa fronteiras entre o real e o imaginário, gera isolamento ou se torna a única forma de afeto, é sinal de alerta”, diz a psicóloga.
A discussão se amplia com os avanços tecnológicos. “Bebês reborn e namorados virtuais têm algo em comum: entregam afeto sem fricção”, explica. Nesses casos, há o risco de empobrecimento emocional, pois se elimina a complexidade das relações reais — feitas de presença, frustração e imprevisibilidade.

Infantilização na vida adulta
Há, ainda, casos em que o brincar encobre dores não elaboradas. Quando o adulto tenta reviver a infância para fugir da realidade, há indício de necessidades emocionais não atendidas. “Um adulto brinca diferente de uma criança, com consciência e dentro de seus limites emocionais”, aponta Laís Mutuberria.
A infantilização na vida adulta não se restringe a mulheres que maternam bonecas. Também aparece em homens hiperconectados a jogos ou realidades paralelas. “Independentemente do gênero, a pergunta central é: que tipo de fuga está sendo acionada? O que esse refúgio revela sobre o sofrimento?”, questiona a psicóloga.
A profissional lembra que o desconforto social diante do brincar na vida adulta também reflete normas culturais. “Vivemos em uma cultura que valoriza controle e produtividade. Quando uma mulher adulta brinca, por prazer, não por dever, isso ainda causa estranhamento. Brincar é legítimo em qualquer fase da vida — desde que seja vivido com consciência e não como forma de escapar da realidade”, acrescenta.
Exercitar o lúdico é importante na vida adulta
Ao mesmo tempo, o brincar na vida adulta não precisa — e talvez nem deva — se confundir com os modos infantis de brincar. Exercitar o lúdico pode, sim, assumir formas compatíveis com o momento de vida e o contexto social de cada pessoa. Para muitas mulheres, por exemplo, há algo profundamente simbólico e divertido em se reunir com amigas para ir a um salão de beleza, trocar ideias, se maquiar, escolher roupas e se arrumar juntas para uma festa. Há ali um espaço legítimo de troca, leveza, criatividade e até de brincadeira com a própria imagem — não como vaidade vazia, mas como expressão do desejo de pertencer, celebrar e se divertir.
A complexidade da vida adulta exige também formas mais sofisticadas e subjetivas de brincar, que não negam a maturidade, mas a integram com prazer e vitalidade. No fim das contas, o mais importante talvez seja a consciência do gesto lúdico — perceber o brincar como escolha, e não como fuga, como possibilidade de vida, e não como uma tentativa de voltar a ser quem já não somos mais.
Por Annete Morhy