"Diário de um Só" é um quadrinho sobre todos nós
Existem diferenças entre quadrinhos produzidos por mulheres e quadrinhos produzidos por homens? Há uma sensibilidade distinta, temáticas características, estilos próprios?
Isso é um mito recorrente e é algo que eu escuto demais acompanhado de frases como "No dia em que mulheres desenharem que nem os homens, terão seus lugares" ou "Mulher só consegue fazer quadrinhos femininos, sensíveis, sobre seu cotidiano". Ora, se formos por esse raciocínio, podemos dizer que Adriana Melo, artista que participou de uma antologia premiada com o Eisner (Puerto Rico Strong), não desenha, ou que Marcello Quintanilha (quadrinista) é uma mulher. Não há diferenças de gênero em relação aos trabalhos dos homens, o que há é falta de oportunidade para essas moças mostrarem do que são capazes de produzir e as que tiveram seus trabalhos publicados continuarem fazendo isso.
Você pode falar um pouco sobre o livro Mulheres & Quadrinhos, que será lançado pela Skript Editora (e que já está em pré-venda)?
É uma produção de mais de 500 páginas e reúne o trabalho de 120 mulheres que são envolvidas com alguma área das histórias em quadrinhos. Eu e a pesquisadora Dani Marino conseguimos reunir quadrinistas, roteiristas, editoras, reticulistas, letristas, pesquisadoras, ilustradoras e tradutoras em uma obra que preza pela diversidade de traços, estilos, mulheres de todos os tipos e regiões do país. Além disso, procuramos dar espaço para as moças que nunca tinham tido nada publicado e as colocamos ao lado de nomes como Helô D'ângelo, Marina Sousa, Lu Caffaggi, Cris Eiko, Carol Pimentel, Lilia Mitsunaga, Verônica Berta, Alice Monstrinho, Dandara Palankof e Sonia Luyten. O livro contará com entrevistas, artigos acadêmicos, tiras, quadrinhos, ilustrações e depoimentos que foram distribuídos de forma leve e prática para o leitor. Uma obra para mostrar que existe quadrinho sendo feito por mulheres no Brasil e para que não só mulheres se vejam nas produções ali reunidas, mas que todos possam apreciar e respeitar ainda mais o trabalho dessas moças.
Janaina de Luna, editora da Mino, fala sobre a trilogia Tabu e sobre o público brasileiro de HQs:
O que motivou o projeto Tabu, em que três autoras escrevem e desenham sobre temas que costumam ser ignorados ou temidos pela sociedade?
Tabu é um projeto antigo meu. Eu comecei a procurar nomes em 2015. A Mino é um editora de grandes autores e uma distribuição ampla, o que nos obriga a tiragens razoáveis de mínimo 2 mil, 2,5 mil cópias. Isso é bom, mas nos afasta de autores que estão começando. E eu via uma força incrível surgindo do quadrinho autoral nacional. A galera mais nova tá matando a pau. Tabu veio da vontade de participar dessa força criadora. Não era para ser composto apenas por mulheres. O chamamento não tinha recorte de gênero. Até teve um homem selecionado, mas ele não aguentou o rojão. A proposta sempre foi de encarar de forma profunda e não óbvia ou didática temas difíceis.
Você é uma editora em um mercado que, muito por conta da ocupação massiva pelos super-heróis, é percebido como machista e misógino. Estamos mudando ou ainda vai levar um bom tempo até que garotas e mulheres sejam melhor representadas nos quadrinhos e mais respeitadas como leitoras?
Nosso mercado não é percebido como machista ou misógino. Ele é extremamente machista e misógino. Em parte por conta do machismo inerente à toda a sociedade. Mas no nosso meio ainda existe agravantes. Antes do Comics Code Authority (um mecanismo de autocensura criado pelas editoras americanas em 1954), havia uma pluralidade de temas e de produção, que, sim, era machista e tal, afinal estamos falando de 1940, 1950. Porém, com o código, bancado por interesses econômicos, a produção de quadrinho de massa foi praticamente reduzida aos gibis de super-herói. Todo o resto foi para o gueto. E aí a coisa fica bem complicada. Eu acho mais engraçado é que, em um país onde existe um personagem como a Mônica, quadrinhos seja visto como coisa de meninos. Não é. Talvez eles sejam mais ativos e percam mais tempo discutindo em fóruns, grupos e tomem mais espaço no lugares representativos. Isso não é muito diferente do que acontece em quase todos os meios. Mas lendo quadrinho? Do público que consome Mino diretamente, 43% são mulheres. Acho que agora, por ajuda inclusive do barateamento dos meios de produção e do alimento das feiras de publicação independente, as mulheres estão tomando um lugar realmente importante como produtoras de conteúdo. Porque como leitoras sempre estivemos ali. Talvez agora não mais caladas sobre o que queremos ou não ler. E isso faz muita diferença.