Cuidar de sua beleza, arranjar-se é uma espécie de trabalho que lhe permite apropriar-se de sua pessoa como se apropria do lar pelo seu trabalho caseiro; seu eu parece-lhe, então, escolhido e recriado por si mesma. Os costumes incitam-na a alienar-se assim em sua imagem. As roupas do homem, como seu corpo, devem indicar sua transcendência e não deter o olhar; para ele, nem a elegância nem a beleza consistem em se constituir em objeto; por isso não considera, normalmente, sua aparência como reflexo de seu ser.
De acordo com a historiadora Mary del Priore, em texto publicado na edição comemorativa lançada pela editora Nova Fronteira em março deste ano, o livro vendeu na primeira semana de lançamento 22 mil exemplares, mas foi proibido no Vaticano e criticado de forma veemente por movimentos políticos à esquerda e à direita.
Simone de Beauvoir construiu uma trajetória independente e controversa para a época. Nunca se casou nem teve filhos. Comprou um apartamento onde morava sozinha. Manteve relações homoafetivas. Se dedicou à escrita e às aulas na universidade. Poderia ter escolhido ser a mulher de Sartre (1905-1980), filósofo com quem manteve duradouro relacionamento, mas optou por ser lembrada como a escritora feminista e filósofa existencialista.
A seguir, alguns dos motivos pelos quais seu livro não perdeu a atualidade sete décadas depois de seu lançamento:
Marco do pensamento feminista, o livro é até hoje relevante para as mulheres contemporâneas.
– Enquanto leio, há aquele riso de nervoso de realmente entender que ela está falando de mim, por mais que não esteja falando da nossa época – resume Marjuliê Martini, 36 anos, jornalista e doutoranda em Comunicação pela UFRGS, que pesquisou no mestrado o ciberfeminismo, a “quarta onda” do movimento.
De acordo com a pesquisadora, as formulações de Simone ainda valem para compreender velhas manobras patriarcais no atual período de alta tecnologia.
– O Segundo Sexo não se tornou um livro superado, as questões que ele traz ainda são complexas – enfatiza Marjuliê. E complementa:
– O livro tem essa importância de pensar que pode existir outra lógica além de homens dominantes e mulheres dominadas.
Ativista, estudante de Filosofia e escritora, Atena Beauvoir, de 28 anos, conquistou há dois anos o direito ao seu nome civil. Para simbolizar sua transição de gênero, adotou como prenome Atena, filha de Zeus na antiga mitologia grega, que já nasce adulta e armada, e Beauvoir, em homenagem a Simone. A razão para a escolha é a vinculação da filósofa sa com a corrente do existencialismo.
– Quando as pessoas trans rompem os conceitos de gênero, fazem o evento mais existencialista. É exatamente isso que a Simone queria, que as mulheres mudassem suas geografias existenciais. Ela mirou na mulher cisgênera e atingiu a população trans – aponta Atena.
Produzir uma obra que guiasse o feminismo 70 anos depois de sua publicação pode não ter sido a ambição de Simone com O Segundo Sexo, por isso ela não se debruçou especificamente sobre questões históricas das mulheres negras e LGBT (na época, ainda acossadas por vários tabus). Para Atena, a escritora também não quis abordar temas dos quais não tinha propriedade.
– Ela sabia seu lugar de fala. É incrível. Ela diz isso. Ela tinha essa consciência racial – pondera Atena, lembrando que, em suas autobiografias, a filósofa indica contato com pessoas trans e pesquisadores negros de sua época.
Em março deste ano, as bailarinas Lauren Lautert, 50 anos, Luciana Dariano, 54, e Rossana Scorza, 53, estrearam a performance Beauvoir-se. As artistas resgataram pensamentos da filósofa e sua relação com os cafés de Paris para construir a coreografia apresentada no Café Camarim, em Porto Alegre.
– A Simone de Beauvoir trabalhou muito em café. Isso nos trouxe o universo dela, do café, da mesa, do escrever, das cartas e dos pensamentos contemporâneos – explica Rossana.
Simone escrevia em cafés muito por não ter uma vida estável. Durantes anos, ela e Sartre viveram em hotéis. Rossana lembra que, em uma agem de A Força da Idade, Simone descreve que, sem opção de onde dormir, hospedou-se na casa de um taxista.
– Morei em Paris por 11 anos. A primeira coisa que fiz quando cheguei lá foi pegar as cartas dela para o Sartre. Fiquei bem mergulhada naquilo – esclarece Luciana, observando que, mesmo com o conteúdo de uma rotina simples, as cartas são uma leitura densa.