Dia 186 (19/9): por Rita Cavalcante
quanto tempo dura o tempo? quando vira a hora e anuncia o dia? quando o alarme canta o compromisso? quando o risco corta o papel preso ao imã da geladeira?
um dia na pandemia leva muito tempo. anos. do primeiro dia até a consulta médica da filha, 113 (não era. era alergia). dia zero. 19/7: os pais se mudaram pra lá. domingo. depois de 4 dias: 44 anos. era agosto. 46 dias hoje. um dia na pandemia leva 1 vida. 133 mil. hoje. eram.
amanheceu 3 vezes depois que a Mãe foi dormir. nunca mais “bom dia”. não era. 14 meses. neoplasia.
Dos escritos de Rafael Valles, pesquisador de cinema, doutor em Comunicação com tese sobre os diários de Jonas Mekas:
1º/6 – E chegamos a junho, 75 dias confinado. A ansiedade por sair já é real, comer num rodízio de carne, ir ao shopping, tomar um ar, caminhar na Redenção. Nada de muito especial, mas que era a minha vida antes do senhor Corona aparecer. (...) escrevo esse diário para mostrar para mim que, por mais que todos esses dias de confinamento pareçam iguais uns aos outros, o diário contribui para mostrar que não, que, mesmo diante dessa imobilidade, desse confinamento em casa, a vida segue o seu curso e cada dia possui a sua história. Quando for ler, mais adiante, isso o que escrevi, lembrarei dessas singularidades. Não será apenas um bloco com dias iguais. É a escrita sobre o cotidiano que ressignifica o cotidiano.
15/9 – Muito louco pensar que hoje marca exatamente seis meses de quarentena, exatamente meio ano. Faz tanto tempo e, ao mesmo tempo, parece ter ado tão rápido. Parece que, quanto mais a, mais o tempo adquire outro sentido, nos traz uma referência que é como a quase falta dela. Muitas coisas foram feitas e, ao mesmo tempo, tão poucas.
18/10 – Diante desse bloco de notas que ainda não sei quando irá terminar ou que fim levará após essa pandemia, decido fazer alguns exercícios de rememoração para ter uma mínima dimensão do que está sendo viver esse período de isolamento social. o o arquivo de notas do formato Word para o PDF. Decido buscar as palavras-chave dessas 223 páginas, aquelas que mais percorreram as minhas anotações. Penso que algumas dessas palavras são sintomáticas dos tempos em que vivemos. Os termos mais recorrentes são “morte” (234 vezes), “Bolsonaro” (199), “pandemia” (127), “Brasil” (121), “vida” (120), “óbito” (111), “coronavírus” (91). A palavra “morte” constituí uma média de 1,04 por página. Bolsonaro, 0,89% por página. Por outro lado, o contraste acaba sendo flagrante quando procuro palavras-chave que possuam um sentido mais alentador. Ao buscar expressões como “felicidade” (25 vezes), “amor” (19), “afeto” (16), “alegria” (5), “esperança” (5), vejo que são termos bastante ausentes nas anotações que fiz ao longo desses sete meses.