— Nós somos duas crianças estranhas e solitárias buscando a eternidade.

Hugh Stewart / Warner Bros./Divulgação
À la Salieri: o Coronel Parker interpretado por Tom Hanks é o narrador de "Elvis"

A exemplo de Cidadão Kane, esta será a história de como um garoto pobre tornou-se um rei solitário. Também como na obra-prima de Orson Welles, o filme lança mão de flashbacks e emprega diferentes técnicas narrativas, sempre procurando casar o enredo com o formato. Se Elvis era fã dos gibis do Capitão Marvel Jr., há cenas que simulam páginas de quadrinhos. Se o cantor virou ator de Hollywood, há uma sequência que remete aos antigos cinejornais.

Dado o personagem e o diretor, a música é um personagem à parte. Ora a montagem assinada por Jonathan Redmond e Matt Villa intercala o blues That's All Right (Mama) com um culto gospel. Ora um eio pela famosa Rua Beale, em Memphis, nos anos 1950, é embalado por trechos de um rap do século 21. Ora a letra de Suspicious Minds é ressignificada — os versos não são mais sobre um complicado relacionamento amoroso, mas sobre a tóxica e abusiva parceria entre Elvis e Parker: "Não podemos continuar juntos / Com desconfiança".

Hugh Stewart / Warner Bros./Divulgação
"Elvis": Austin Butler, Helen Thompson (que faz Gladys, a mãe do cantor), Tom Hanks (o empresário Coronel Parker) e Richard Roxburgh (Vernon, o pai)

São os truques de Baz Luhrmann para inebriar o espectador, da mesma forma que o coronel Parker entendia o showbiz como um circo ilusionista. Mas de nada adiantariam a imaginação e o tino de Parker e de Luhrmann se eles não contassem com o talento e a dedicação de Elvis Presley e de Austin Butler. Se em entrevistas o diretor disse que Elvis se parece com um filme de super-herói — "Ele sobe tão alto, depara com sua kryptonita e cai" —, coube ao ator fazer o lado humano sobressair. 

Californiano de 31 anos, coadjuvante em alguns seriados da Disney quando adolescente, Butler era um ilustre desconhecido, o que contribui para o número de mágica funcionar tão bem: não somos distraídos por sua história pregressa. Seu único papel de destaque havia sido em uma série derivada de Sex and the City, O Diário de Carrie (2013-2014) — viveu Sebastian Kydd, a paixão da versão teen de Carrie Bradshaw. Também havia atuado em Era uma Vez em... Hollywood (2019), de Quentin Tarantino, como Tex Watson, integrante da seita de Charles Manson. Para encarnar Elvis, preparou-se durante um ano, treinando os trejeitos, o tom de voz, a dicção e, claro, a dança e o canto — é ele quem realmente interpreta os sucessos na fase jovem; nas cenas a partir do '68 Comeback Special, o filme recorre a gravações originais.

Warner / Divulgação
Caracterização de Austin Butler na fase Las Vegas de Elvis Presley impressiona

Curiosamente, é justamente a partir da fase Las Vegas que a caracterização de Austin Butler se torna mais impressionante. A ponto de espectadores não perceberem a transição do Elvis personagem para o Elvis verdadeiro em uma das derradeiras apresentações do cantor: Unchained Melody, última canção do último show, no dia 21 de junho de 1977, em Rapid City (Dakota do Sul). Aí está a única vantagem de ver Elvis no streaming: poder rever uma cena quantas vezes você quiser, poder comparar a interpretação de Butler com apresentações originais (como a de If I Can Dream, do especial de TV de 1968) e, vá lá, poder interromper a sessão para fazer alguma pesquisa no Google ou no YouTube. 

Em entrevista à revista Variety, os editores do filme comentaram a tal sequência com Unchained Melody. Jonathan Redmond elogiou a atenção que o ator deu aos detalhes ("Com as respirações e pausas, ele acertou em cheio"). Matt Villa lamentou a possível desatenção de parte da plateia:

— Me dá um soco no coração toda vez que vejo aquela cena e o rosto do Elvis. Quando estamos assistindo ao filme com o público, eu olho em volta para ver se as pessoas têm a mesma emoção, e muitas vezes não há.

E é isso mesmo, um soco no coração, assistir a um rei nitidamente debilitado (tinha diabetes, glaucoma, hipertensão, constipação severa...), mas ainda bonito, com a voz ofegante, mas ainda poderosa, interpretando uma das mais belas canções já escritas. Sentado ao piano, com o guitarrista e amigo Charlie Hodge segurando o microfone, o cantor entoa versos que a um só tempo exprimem a saudade de um imenso amor e soam como um pedido de misericórdia para o sofrimento que Elvis Presley vinha enfrentando: "Meu amor, minha querida / Eu tenho ansiado por seu toque / Um longo tempo solitário / E o tempo a, tão lentamente / E o tempo pode fazer tanto / Você ainda é minha? / Eu preciso do seu amor / Eu preciso do seu amor / Deus, mande depressa teu amor para mim / Rios solitários fluem para o mar / para o mar / Para os braços abertos do mar / Rios solitários suspiram, Espere por mim / espere por mim / Estarei chegando em casa / espere por mim / Meu amor, minha querida / Eu tenho ansiado / ansiado por seu toque / Um longo tempo solitário / E o tempo a, tão lentamente / E o tempo pode fazer tanto / Você ainda é minha? / Eu preciso do seu amor / Eu preciso do seu amor / Deus, mande depressa teu amor para mim".

Só não chora quem já morreu. Elvis vive.

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