Essa realidade mostra a necessidade de oferecermos alternativas de emprego e renda para o cidadãO. Sem alternativa, o cidadão destrói a floresta para pegar açaí, para tirar ouro, enfim, fazer qualquer coisa para comer.
Na apresentação, a senhora diz que a história da Dendiara é uma realidade aviltante, capaz de envergonhar as pessoas que representam o Brasil no Exterior. A imagem do Brasil lá fora é um dos temas atuais. Como a senhora a avalia neste momento?
Tenho, como você sabe, as limitações do cargo em que estou. Não posso fazer uma avaliação de imagem do Brasil estando nesse cargo. O que faço no livro é ficcional. É uma história de ficção.
Nairóbi, Paris, Atenas, Montevidéu, Caiena... Nesses 45 anos de carreira diplomática, quantas histórias deve ter coletado. Que recordações tem?
É uma vida nômade. Ou você gosta ou não vai aguentar. Não é uma vida de meio termo. Ou há aquela excitação a cada vez que te mandam para um país, “vou conhecer algo novo”, ou você entra em parafuso. Se você tem medo de viajar, fica receoso em uma cidade estranha, com uma língua exótica, aí o Itamaraty dá úlcera. A pessoa tem de gostar dessa vida. O diplomata tem de ser um observador de tudo o tempo todo. Você não está só aquelas oito horas no escritório. Tem de se preparar para ir para um país e estudá-lo. Quando fui para Nairóbi (Quênia), estudei toda história daquele pedaço da África, inclusive da expansão do Islã, que tem um reflexo na antropologia, na sociologia, até a presença inglesa, e a independência feita por um líder africano muito importante, Jomo Kenyatta. Essa vida te obriga a estudar. Para mim, é fascinante. Não vi o tempo ar nesses 45 anos. Foi ontem, um piscar de olhos.
Qual foi o posto mais difícil?
O mais difícil de conhecer toda a realidade foi Toronto. É uma cidade sofisticada, com um nível de ciência e tecnologia muito alto, muitas startups, inteligência artificial. Esse novo mundo da cooperação científica e tecnológica, na área cibernética, para mim, foi difícil. É um mundo novo. De repente, eu me vi diante de um potencial vastíssimo para negócios e cooperação. Toronto é a maior bolsa de valores para mineração do mundo. Se você quer capitalizar uma empresa de mineração, vai à bolsa de Toronto. Me vi diante de um padrão único, avançado, com potencial enorme para negócios. Tive de correr atrás.
Achei que a senhora responderia Nairóbi, pela diferença cultural.
Nairóbi é produtora de café, a gente tem uma história. Agora, startup, inteligência artificial, financiamento de mineração... Isso tudo gera uma economia muito sofisticada. Minha ideia era tentar resgatar um pouco esses brasileiros que foram embora do Brasil e estão trabalhando com alta tecnologia em Toronto para ver se devolvem alguma coisa para o país em forma de negócios. Isso é uma coisa que temos de fazer: procurar na diáspora brasileira, na fuga de cérebros, aqueles que estão trabalhando com tecnologia que nos interessa e fazer com que façam negócios com o Brasil. Porque se os deixa na Califórnia, em Boston, em Toronto, trabalhando para o empregador estrangeiro, ele não necessariamente irá buscar parcerias no Brasil. Mas, se você for estimulando aquele técnico a se relacionar com o mundo dos negócios ou a academia brasileira, a gente tem algum retorno da experiência dele: o que a nossa rede de cérebros exportados pode nos devolver em forma de cooperação técnica e investimento. É um desafio novo para o Itamaraty.
Voltando à Amazônia, a senhora conseguiu visitar a floresta?
Sim, com amigos da Universidade Federal do Amapá (Unifap). Eles têm um campus avançado em Oiapoque. E eles tinham um curso de Pedagogia em Língua Indígena, um trabalho muito bonito. Fui com esse pessoal a algumas aldeias indígenas, tanto do lado francês quando do brasileiro. Fiquei amiga de um pajé, ele me mostrou inclusive algumas areias movediças, onde teve um confronto com um missionário. Em outra ocasião, fui com os policiais ses, desci em um garimpo de helicóptero, porque tinham prendido alguns brasileiros.
Em um momento de cúpula climática, com ascensão de Joe Biden nos EUA, a Amazônia está no centro dos debates. O que a senhora pensa sobre a inserção do Brasil nesse diálogo global?
Como todos os brasileiros, eu olhava a Amazônia como uma floresta, o pulmão, o ar-condicionado do mundo. Depois de ter morado lá, comecei a olhar para a pessoa que mora na floresta. A árvore é vital, mas o que temos de olhar, como agentes de governo, é a pessoa que vive lá. Essas pessoas têm de viver. É claro que é melhor que não destruam a floresta, porque o planeta precisa dela. Então, temos de oferecer a essas pessoas alternativas de emprego e renda sem derrubar a floresta. A questão do índio também. Ele é um ser humano. Tem o direito de viver como quiser, inclusive tendo celular, se quiser. Mas não podemos impor.
Isso é uma coisa que temos de fazer: procurar na diáspora brasileira, na fuga de cérebros, aqueles que estão trabalhando com tecnologia que nos interessa e fazer com que façam negócios com o Brasil. É um desafio novo para o Itamaraty.
O alcoolismo é um problema comum entre a comunidade indígena?
Vi muito alcoolismo entre os índios. Um pouco empurrado pelos donos de bar. O índio tinha um dinheirinho, vinha na cidade, e os comerciantes saíam correndo a oferecer cerveja. O índio é muito frágil para o álcool. Minha amizade com o pajé veio muito porque ele combatia o alcoolismo. Ele dizia que índio só deveria beber bebida de índio, e não de branco. Dizia: “Quer beber como branco? Põe uma gravata. Quer viver como índio? Fica no mato, a o dia pescando e só toma bebida de índio. Você escolhe”. A discussão não é tão simples. Mas, em sua simplicidade e com sua autoridade moral, ele presta um serviço.
E agora, como está a situação na fronteira com o Uruguai em termos de covid-19?
Boa. Mas isso não quer dizer que as pessoas têm de tirar a máscara. Fiquei muito contente com o tratamento que recebi no Uruguai. Tomei a primeira dose da vacina em abril, a segunda no início de maio, e a terceira no início de setembro. Todos tivemos um calendário que foi muito bom. Com isso, a pandemia arrefeceu por lá. E, no lado de Santana do Livramento, pelo menos o Rio Grande do Sul parece-me muito bem. Na fronteira, o reflexo desse bom cuidado no Estado também se refletiu.
A história de Dendiara pode virar filme?
Já cedi os direitos para uma produtora de Belo Horizonte chamada Persona. E essa produtora está em negociação com um grupo francês. A ideia é filmar, se for o caso, na Amazônia sa, em Caiena mesmo, porque tem uma participação da polícia sa. Estamos em conversação.
Quase meio século de Itamaraty, sendo mulher, em uma diplomacia que sempre foi conhecida por ser um espaço masculino, por vezes elitista e machista. Como foi o desafio de abrir espaço?
Foi interessante. Experimentei certa misoginia, mas muito leve. Era mais uma coisa paternal, quando eu não queria ser paternalizada coisa nenhuma. Eu queria que lessem até o fim a análise que eu havia feito. E diziam: “Minha filha, você fez muito bem estudar esse assunto”. Só faltava o cara botar três estrelinhas no meu paper. Mas entendi. Era algo inédito uma mulher fazer uma análise sobre uma guerra. Acabei encontrando mulheres bem amargas. As mais antigas. Acho que elas abriram um caminho que para mim só foi melhor porque houve elas antes. O que espero é deixar melhor para as gurias mais novas.
O Itamaraty mudou nesse quesito?
Mudou, mas ainda não tudo o que tinha de mudar. Nossa sociedade diz “dar direito às mulheres”. Não é isso. É reconhecer o direito que as mulheres sempre tiveram. “Dar direito às minorias, aos negros.” Não! Os negros são cidadãos, sempre tiveram direito, você tem de reconhecer um direito que estava abafado, escamoteado. Até no linguajar você vê a mentalidade que está por trás. Não quero que me deem nenhum direito, mas reconheçam o direito que sempre tive. À medida que a gente diz isso para as pessoas com clareza, a situação melhora. Eu levo desaforo para casa, mas, se você me incomodar muito, vou ter um ataque de nervos. Se cuida comigo! (Risos.)