O jornalista Carlos Redel colabora com a colunista Juliana Bublitz, titular deste espaço.
Durante a entrevista, Geovaine Ornelles da Silva citou a sua mãe, Sueli, diversas vezes. Afinal, partiu dela o incentivo que o futuro artista, ainda nos anos 1960, precisava para não desistir de trilhar o caminho que sonhava. Em Bagé, ela tinha uma eletrola na qual colocava músicas para os filhos ouvirem — Jorge Ben, Elza Soares, Elvis Presley — enquanto ajudavam na limpeza da casa.
— As casas antigas tinham chão de tábuas. Aí, a minha mãe botava cera e deixava secar um pouco. Depois, ela largava uns blusões velhos e a gente ficava em cima, curtindo a música, brincando e encerando a casa — recorda Geovaine, que lamenta nunca ter tido uma máquina fotográfica para eternizar um momento entre ele e Sueli.
Ela via ali o talento do menino, único menino de oito filhos. Nos domingos, a matriarca apoiava que o guri fosse até a Rádio Difusora e apresentasse, em um programa infantil, as músicas que ficava ensaiando no dia anterior. Sueli ficava em casa, do ladinho do aparelho de som, só para ouvir o rebento cantar por meio das ondas do AM.
Quando o pai de Geovaine, Osvaldo, morreu, a família toda se mudou para Porto Alegre. O menino tinha nove anos. Por coincidência, a nova casa ficava atrás de uma fábrica de instrumentos musicais. Pronto. Era o sinal que faltava. Foi colecionando discos, fazendo aula de música na escola e não demorou muito para que começasse a colocar música em festas, em uma época em que não existia bailes com DJ.
Começava a se criar Gê Powers — apelido que ganhou dos colegas de escola, mas que adotou para a sua vida artística. Mesmo sem ter dinheiro sobrando, Sueli ajudou o filho a comprar os equipamentos iniciais, como caixas de som e amplificador. Aos 13 anos, ele já estava começando a conquistar os seus primeiros cachês, tocando fixo em um clube no Partenon. Começou, então, a ajudar a sua mãe. Isso em 1970, há 55 anos.
Retribuindo
Dividido entre empregos formais — de office boy a classificador de cheques no Banrisul, onde se aposentou —, Gê Powers nem sabia que estava entrando para a história do hip hop gaúcho, sendo um dos pioneiros da black music no Estado. O tempo mostrou isso. Tanto é que, atualmente, existe uma foto dele na entrada do Museu da Cultura Hip Hop, uma sala em homenagem ao DJ e toda a sua história sendo contada nas paredes do espaço.
Inclusive, foi este local que ele escolheu para dar entrevista para a coluna. Gê recorda, aliás, que, pouco depois de iniciar a sua carreira como DJ, já estava lotando os salões de Porto Alegre e, mais do que isso, incentivando, mesmo antes de ter 20 anos completados, outros artistas a entrarem para a cena da discotecagem. Abriu portas.
Em 1975, Gê quis dar um o a mais. Chegou no Colégio Champagnat com uma proposta curiosa para o irmão marista Alexandre João Durante, um dos criadores do clube de patinadores Tangarás. Queria alugar o salão onde os atletas se apresentavam na noite do dia 24 e fazer uma inédita festa black no local para celebrar o Natal — a Jingle Black. O responsável pelo espaço não levou fé.
— Ele disse assim: "Cara, eu vou te alugar porque tu estás insistindo, mas tu vais perder dinheiro. Ele falou o preço, eu paguei. Levei a minha mãe junto. No dia 25, ele estava de plantão e até queria companhia. Toda a família jantou lá dentro. Ele junto. Quando deu meia-noite, liguei um sonzinho baixinho. A gente se abraçou, aquela coisa de dar "feliz Natal". Quando foi meia hora, começou a chegar os primeiros gatos pingados. Foi indo, foi indo. Deu 500 pessoas — recorda Gê Powers, orgulhoso.
Esta, para ele, foi a festa que mudou tudo. O divisor de águas. A noite foi um sucesso, atraindo um público periférico para um espaço frequentado apenas pela classe média:
— Até o irmão Alexandre se empolgou. Agradeceu a família depois da festa, que foi maravilhosa, mas deu uma letra: "Eu nunca vi tanto negro junto e não dar uma confusão". Aí eu disse: "Mas por que tem que ser assim? Nós viemos para nos divertir. O senhor viu. Entraram, dançaram. Até o senhor se empolgou, botou uma luz para dançarmos. E o senhor não viu ninguém se empurrando, nem nada. E digo mais: "Quero alugar outra data para o senhor ver que festa de negro não dá confusão". Aí ele me alugou, só para mim. Os outros grupos foram lá, mas ele dizia: "Não, aqui só o Gê vai tocar".
A melhor coisa que tem é o respeito, cara
GÊ POWERS
DJ e um dos pioneiros da black music no RS
O nome de Gê Powers, nos anos seguintes, foi se consolidando cada vez mais na cena e chegando a mais lugares, como Grêmio Náutico Gaúcho e do Glória Tênis Clube. Antes, segundo o DJ, não eram espaços frequentados por negros. Nesta empreitada, ele afirma que o seu público foi, inclusive, expandindo-se, somando-se os brancos, que iam aos bailes curtir o som de nomes como James Brown. O rap vem se fazendo mais popular e, finalmente, entra no Estado — e, claro, Gê abraça essa "melodia tagarelada", como diz, que também a a atuar como produtor cultural.
Na batida do rap, ele funda, junto com outros artistas, um dos grupos precursores do gênero em Porto Alegre, o J Clip — gravando CDs e vendendo milhares de cópias, fazendo sucesso e, inclusive, abrindo apresentações para grandes nomes da música na Capital, como a Xuxa. Pois é, coisas dos anos 1990. O grupo segue unido, mas em stand by, planejando uma reformulação para voltar aos holofotes em grande estilo.
Desgosto e retorno
Neste meio tempo, o inquieto Gê Powers montou um bar, em 1998, na Cidade Baixa. O empreendimento mudou de endereço algumas vezes, tendo o seu auge ao lado do Casa de Praia, na José do Patrocínio. Por ali, o DJ levou diversos artistas para se apresentar e movimentou a região com festas animadas. O estabelecimento durou até 2004, sendo encerrado não por falta de público, mas por uma fatalidade:
— A gente se desgostou. Teve uma ameaça de assalto, com três caras chegando às 4h da manhã. Era 30 de dezembro de 2004. Eles queriam entrar, mas o grupo Senzala já estava na última música. Não estávamos mais recebendo ninguém. O segurança não deixou entrarem. Eles começaram a atirar para dentro do bar, a esmo. Meu cunhado ia saindo na hora. Uma bala pegou no coração do rapaz, que morreu no local. Encerramos as atividades. Me mudei para Imbé. Fiquei três anos lá.
Quando Porto Alegre começou a chamar Gê Powers de volta, com ofertas de shows, ele decidiu colocar fim ao período de descanso e retornar para o fervo. Hoje em dia, a agenda do DJ está recheada, com diversos projetos — inclusive, a cada dois meses, rola no Bar Opinião o Baile Sul Charme, o qual reúne sempre umas mil pessoas. Um sucesso. A próxima edição, por sinal, está marcada para 15 de junho.
— A melhor coisa que tem é o respeito, cara. Tu ter as portas abertas, as pessoas gostarem do teu trabalho. Para mim, é isso que é importante. Não é por dinheiro, é por reconhecimento do trabalho, que tu faz com amor. Eu fico muito agradecido com essa juventude. Tem netos de amigos meus indo nas minhas festas. E isso é muito lindo, né? — finaliza Gê Powers, aos 68 anos, deixando as lágrimas rolarem sentado de frente para a sua história, já registrada em um museu.